Primeiro Capitulo de Veronika decide Morrer

segunda-feira, 12 de outubro de 2009



“Eis que vos dei o poder de pisar serpentes...

e nada poderá vos causar dano’



Lucas 10:19



No dia 11 de novembro de 1997, Veronika decidiu que havia – afinal! – chegado o momento de se matar. Limpou cuidadosamente seu quarto alugado num convento de freiras, desligou a calefação, escovou os dentes e deitou-se.

Na mesa de cabeceira , pegou as quatro caixas de comprimidos para dormir. Ao invés de amassa-los e misturar com água, resolveu toma-los um a um, já que existe uma grande distancia entre a intenção e o ato, e ela queria estar livre para arrepender-se no meio do caminho. Entretanto, a cada comprimido que engolia, sentia-se mais convencida: no final de cinco minutos, as caixas estavam vazias.
Como não sabia exatamente quanto tempo ia demorar para perder a consciência, deixara em cima da cama um a revista francesa Homme, edição daquele mês, recém chegada na biblioteca onde trabalhava. Embora não tivesse nenhum interesse especial por informática, ao folhear a revista descobrira um artigo sobre um jogo de computador (CD-Rom, como chamavam) criado Paulo Coelho, um escritor brasileiro que tivera oportunidade de conhecer numa conferencia no café do hotel Grand Union. Os dois haviam trocado algumas palavras, e ela terminara sendo convidada por seu editor para jantar. Mas o grupo era grande, e não houve possibilidade de aprofundar nenhum assunto.
O fato de haver conhecido o autor, porém, levava-a a pensar que ele era parte do seu mundo, e ler uma matéria sobre seu trabalho podia ajudar a passar o tempo. Enquanto esperava a morte, Veronika começou a ler sobre informática, um assunto pelo qual não tinha o mínimo interesse – e isto combinava com tudo o que fizera a vida inteira, sempre procurando o que estava mais fácil, ou ao alcance da mão. Como aquela revista, por exemplo.
Para sua surpresa, porém, a primeira linha do texto tirou-a de sua passividade natural (os calmantes ainda não tinham dissolvido em seu estômago, mas Veronika já era passiva por natureza), e fez com que, pela primeira vez em sua vida, considerasse como verdadeira uma frase que estava muito em moda entre seus amigos: “nada neste mundo acontece por acaso”.
Por que aquela primeira linha, justamente num momento em que havia começado a morrer? Qual a mensagem oculta que tinha diante dos seus olhos, se é que existem mensagens ocultas ao invés de coincidências?.
Embaixo de uma ilustração do tal jogo de computador, o jornalista começava sua matéria perguntando:
“Onde é a Eslovénia?”

“Ninguém sabe onde é a Eslovénia” pensou. “Nem isso.”
Mas a Eslovénia mesmo assim existia, e estava lá fora, lá dentro, nas montanhas a sua volta e na praça diante dos seus olhos: a Eslovénia era seu país.
Deixou a revista de lado, não lhe interessava agora ficar indignada com um mundo que ignorava por completo a existência dos eslovenos; a honra de sua nação não lhe dizia mais respeito. Era hora de ter orgulho de si mesma, saber que fora capaz, finalmente tivera coragem, estava deixando esta vida: que alegria! E estava fazendo isso da maneira com que sempre sonhara – através de comprimidos, que não deixam marcas.
Veronika procurara pelos comprimidos por quase seis meses. Achando que nunca iria consegui-los, chegara a considerar a possibilidade de cortar os pulsos. Mesmo sabendo que ia terminar enchendo o quarto de sangue, deixando as freiras confusas e preocupadas, um suicídio exige que as pessoas pensem primeiro em si mesmas, e depois nos outros. Estava disposta a fazer todo o possível para que sua morte não causasse muito transtorno, mas se cortar os pulsos fosse a única possibilidade, então não havia jeito - e as freiras que limpassem o quarto, e esquecessem logo a história, senão teriam dificuldades de aluga-lo de novo. Afinal de contas, mesmo no final do século XX, as pessoas ainda acreditavam em fantasmas.
É claro que ela também podia atirar-se de um dos poucos prédios altos de Lubljana, mas e o sofrimento extra que tal atitude terminaria causando aos seus pais? Além do choque de descobrir que a filha morrera, ainda seriam obrigados a identificar um corpo desfigurado: não, esta era uma solução pior do que sangrar até morrer, pois deixaria marcas indeléveis em duas pessoas que só queriam o seu bem.
“Com a morte da filha eles terminarão se acostumando. Mas um crânio esmagado deve ser impossível de esquecer”.
Tiros, quedas de prédio, enforcamento, nada disso combinava com sua natureza feminina. As mulheres, quando se matam, escolhem meios muito mais românticos – como cortar os pulsos, ou tomar uma dose excessiva de comprimidos para dormir. As princesas abandonadas, e as atrizes de Hollywood deram bastante exemplos a este respeito.
Veronika sabia que a vida era uma questão de esperar sempre a hora certa para agir. E assim foi: dois amigos seus, sensibilizados com suas queixas de que não conseguia mais dormir, arranjaram – cada um – duas caixas de uma droga poderosa, que era utilizada por músicos de uma boate local. Veronika deixou as quatro caixas na sua mesa de cabeceira durante uma semana, namorando a morte que se aproximava, e despedindo-se – sem qualquer sentimentalismo – daquilo que chamavam Vida.

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