Veronika Decide Morrer

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Veronika tremia, sem entender direito porque.
- Chaves? – perguntou a enfermeira. – A porta está sempre aberta. Imagine se vou ficar aqui dentro, trancada com um bando de doentes mentais!
“Como a porta está aberta? Há alguns dias eu quis sair daqui, e esta mulher foi até o banheiro me vigiar. O que ela está dizendo? “
- Não me leve a sério – continuou a enfermeira. – O fato é que não precisamos de muito controle, por causa dos comprimidos para dormir. Você está tremendo de frio?
- Não sei. Acho que deve ser coisa do meu coração.
- Se quiser, vá dar o seu passeio.
- Na verdade, o que eu gostaria mesmo era tocar piano.
- A sala de estar é isolada, e seu piano não perturbaria ninguém. Faça o que tiver vontade.
O tremor de Veronika transformou-se em soluços baixos, tímidos, contidos. Ela ajoelhou-se, e colocou a cabeça no colo da mulher, chorando sem parar.
A enfermeira deixou o livro, acariciou seus cabelos, deixando que a onda de tristeza e pranto fosse embora naturalmente. Ali ficaram as duas, por quase meia-hora: uma que chorava sem dizer por que, outra que consolava sem saber o motivo.
Os soluços finalmente terminaram. A enfermeira levantou-a, pegou-a pelo braço, e conduziu-a até a porta.
- Tenho uma filha da sua idade. Quando você chegou aqui, cheia de soros e tubos, fiquei imaginando por que uma moça bonita, jovem, que tem a vida pela frente, resolve matar-se.
“ Logo começaram a correr histórias: a carta que deixou – e que nunca acreditei ser o real motivo – e os dias contados por causa de um problema incurável no coração. A imagem da minha filha não saía de minha cabeça: e se ela resolve fazer alguma coisa igual? Por que certas pessoas tentam ir contra a ordem natural da vida - que é lutar para sobreviver de qualquer maneira?”
- Por isso eu estava chorando – disse Veronika. – Quando tomei os comprimidos, eu queria matar alguém que detestava. Não sabia que existia, dentro de mim, outras Veronikas que eu saberia amar.
- O que faz uma pessoa detestar a si mesma?
- Talvez a covardia. Ou o eterno medo de estar errada, de não fazer o que os outros esperam. Há alguns minutos estava alegre, esqueci minha sentença de morte; quando voltei a entender a situação em que me encontro, fiquei assustada.
A enfermeira abriu a porta, e Veronika saiu.
Ela não podia ter me perguntado isso. O que ela quer, entender por que eu chorei? Será que não sabe que sou uma pessoa absolutamente normal, com desejos e medos comuns a todo mundo, e que este tipo de pergunta – agora que já é tarde – pode me fazer entrar em pânico?
Enquanto caminhava pelos corredores, iluminados pela mesma lâmpada fraca que vira na enfermaria, Veronika se dava conta de que era tarde demais: já não conseguia controlar seu medo.
‘Preciso me controlar. Sou alguém que leva até o fim qualquer coisa que decidi fazer”.
Era verdade que levara até as últimas conseqüências muitas coisas em sua vida, mas só o que não era importante – como prolongar brigas que um pedido de desculpa resolveria, ou deixar de ligar para um homem pelo qual estava apaixonada, por achar que aquela relação não ia levar a nada. Fora intransigente justamente naquilo que era mais fácil: mostrar para si mesma que sua força e indiferença, quando na verdade era uma mulher frágil, que jamais conseguira destacar-se nos estudos, nas competições esportivas de sua escola, na tentativa de manter a harmonia em seu lar.
Superara os seus defeitos simples, só para ser derrotada nas coisas importantes e fundamentais. Conseguia passar a aparência da mulher independente, quando necessitava desesperadamente de uma companhia. Chegava nos e todos a olhavam, mas geralmente terminava a noite sozinha, no convento, olhando a televisão que nem sequer sintonizava os canais direito. Dera a todos os seus amigos a impressão de ser um modelo que eles deviam invejar – e gastara o melhor de suas energias tentando se comportar á altura da imagem que criara para si mesmo.
Por causa disso, nunca lhe sobrou nunca forças para ser ela mesma - uma pessoa que, como todas as outras do mundo, necessitava dos outros para ser feliz. Mas os outros eram tão difíceis! Tinham reações imprevisíveis, viviam cercados de defesas, comportavam-se também como ela, mostrando indiferença a tudo. Quando chegava alguém mais aberto para a vida, ou o rejeitavam imediatamente, ou o faziam sofrer, considerando-o inferior e “ingênuo”.
Muito bem: podia ter impressionado muita gente com sua força e determinação, mas onde havia chegado? No vazio. Na solidão completa. Em Villete. Na ante-sala da morte.
O remorso pela tentativa de suicídio voltou, e Veronika tornou a afasta-lo com firmeza. Porque agora estava sentindo algo que nunca se permitira: ódio.
Ódio. Algo quase tão físico como paredes, ou pianos, ou enfermeiras – ela quase podia tocar a energia destruidora que saía do seu corpo. Deixou que o sentimento viesse, sem se preocupar se era bom ou não - bastava de auto-controle, de máscaras, de posturas convenientes, Veronika agora queria passar seus dois ou três dias de vida sendo a mais inconveniente possível.
Começara dando um tapa no rosto de um homem mais velho, tivera um ataque com o enfermeiro, recusara-se a ser simpática e conversar com os outros quando queria ficar sozinha, e agora era livre o suficiente para sentir ódio – embora esperta o bastante para não começar a quebrar tudo a sua volta, e ter que passar o final de sua vida sob o efeito de sedativos, numa cama da enfermaria.
Odiou tudo o que pode naquele momento. A si mesma, ao mundo, a cadeira que estava na sua frente, a calefação quebrada num dos corredores, as pessoas perfeitas, os criminosos. Estava internada num hospício, e podia sentir coisas que os seres humanos escondem de si mesmos - porque somos todos educados apenas para amar, aceitar, tentar descobrir uma saída, evitar o conflito. Veronika odiava tudo, mas odiava principalmente a maneira como conduzira sua vida - sem jamais descobrir as centenas de outras Veronikas que habitavam dentro dela, e que eram interessantes, loucas, curiosas, corajosas, arriscadas.
Em dado momento, começou a sentir ódio também pela pessoa que mais amava no mundo: sua mãe. A excelente esposa que trabalhava de dia e lavava os pratos de noite, sacrificando sua vida para que a filha tivesse uma boa educação, soubesse tocar piano e violino, se vestisse como uma princesa, comprasse os tênis e calças de marca, enquanto ela remendava o velho vestido que usava há anos.
“Como posso odiar quem apenas me deu amor? “ pensava Veronika, confusa, e querendo corrigir seus sentimentos. Mas já era tarde demais, o ódio estava solto, ela abrira as portas do seu inferno pessoal. Odiava o amor que lhe tinha sido dado – porque não pedia nada em troca - o que é absurdo, irreal, contra as leis da natureza.
O amor que não pedia nada em troca conseguia enche-la de culpa, de vontade de corresponder as suas expectativas, mesmo que isso significasse abrir mão de tudo que sonhara para si mesma. Era um amor que tentara lhe esconder, durante anos, os desafios e a podridão do mundo – ignorando que um dia ela iria se dar conta disso, e não teria defesas para enfrenta-los.
E seu pai? Odiava seu pai, também. Porque, ao contrário de sua mãe que trabalhava o tempo todo, ele sabia viver, a levava aos bares e ao teatro, divertiam-se juntos, e quando ainda era jovem ela o amara em segredo, não como se ama um pai, mas um homem. Odiava-o porque ele fora sempre tão encantador e tão aberto com todo mundo - menos com sua mãe, a única que realmente merecia o melhor.
Odiava tudo. A biblioteca com seu monte de livros cheios de explicações sobre a vida, o colégio onde fora obrigada a gastar noites inteiras aprendendo álgebra, embora não conhecesse nenhuma pessoa – exceto os professores e matemáticos – que precisassem de álgebra para serem mais felizes. Por que lhe tinham feito estudar
tanto álgebra, ou geometria, ou aquela montanha de coisas absolutamente inúteis?
Veronika empurrou a porta da sala de estar, chegou diante do piano, abriu sua tampa, e – com toda a força – bateu com as mãos no teclado. Um acorde louco, sem nexo, irritante, ecoando pelo ambiente vazio, batendo nas paredes, voltando aos seus ouvidos sob a forma de um ruído agudo, que parecia arranhar sua alma. Mas isso era o melhor retrato de sua alma naquele momento.
Tornou a bater com as mãos, e mais uma vez as notas dissonantes reverberaram por toda parte.
“Sou louca. Posso fazer isso. Posso odiar, e posso espancar o piano. Desde quando os doentes mentais sabem colocar as notas em ordem?”
Bateu no piano uma, duas, dez, vinte vezes – e a cada vez que fazia isso, seu ódio parecia diminuir, até que passou por completo .
Então, novamente, uma profunda paz inundou-a, e Veronika tornou a olhar o céu estelado, com a lua em quarto crescente - sua favorita - enchendo de luz suave o lugar onde se encontrava. Veio de novo a sensação de que Infinito e Eternidade andavam de mãos dadas, e bastava contemplar um deles – como o Universo sem limites - para notar a presença do outro, o Tempo que não termina nunca, que não passa, que permanece no Presente, onde estão todos os segredos da vida. Entre a enfermaria e a sala ela fora capaz de odiar, tão forte e tão intensamente, que não lhe sobrara nenhum rancor no coração. Deixara que seus sentimentos negativos, represados durante anos em sua alma, viessem finalmente a tona. Ela os tinha sentido, e agora não eram mais necessários – podiam partir.
Ficou em silêncio, vivendo seu momento Presente, deixando que o amor ocupasse o espaço vazio que o ódio deixara. Quando sentiu que chegara o momento, virou-se para a lua e tocou uma sonata em sua homenagem – sabendo que ela a escutava, ficava orgulhosa, e isto provocava ciúmes nas estrelas. Tocou então uma música para as estrelas, outra para o jardim, e uma terceira para as montanhas que não podia ver de noite, mas sabia que estavam lá.
No meio da música para o jardim, outro louco apareceu – Eduard, um esquizofrênico que estava além da possibilidade de cura. Ela não se assustou com sua presença: ao contrário, sorriu, e para sua surpresa ele sorriu de volta.
Também no seu mundo distante, mais distante do que a lua, a música era capaz de penetrar e fazer milagres.
“Tenho que comprar um novo chaveiro”pensava o Dr. Igor, enquanto abria a porta do seu pequeno consultório no Sanatório de Villete. O antigo estava caindo aos pedaços, e o pequeno escudo de metal que o enfeitava acabara de cair no chão.
Dr. Igor abaixou-se e pegou-o. O que iria fazer com este escudo, mostrando o brasão de Lubljana? Melhor jogar fora. Mas podia mandar conserta-lo, pedindo que refizessem uma nova alça de couro - ou podia da-lo a seu neto, para brincar. Ambas as alternativas lhe pareceram absurdas; um chaveiro custava muito barato, e seu neto ano tinha o menor interesse em escudos – passava o tempo todo vendo televisão, ou divertindo-se com jogos eletrônicos importados da Itália. Mesmo assim, não jogou fora; colocou-o no bolso, para decidir mais tarde o que fazer com ele.
Por isso era um diretor de sanatório, e não um doente; porque refletia muito antes de tomar qualquer atitude.
Acendeu a luz – amanhecia cada vez mais tarde, a medida que avançava o inverno. A ausência de luz, , assim como as mudanças de casa ou os divórcios, eram os principais responsáveis pelo aumento do número de casos de depressão. Dr. Igor torcia para que a primavera chegasse logo, e resolvesse metade dos seus problemas.
Olhou a agenda do dia. Precisava estudar algumas medidas para não deixar que Eduard morresse de fome; sua esquizofrenia fazia com que fosse imprevisível, e agora ele deixara de comer por completo. Dr. Igor já receitara alimentação intravenosa, mas não podia manter aquilo para sempre; Eduard tinha 28 anos, era forte, e mesmo com o soro ia terminar definhando, ficando com aspecto esquelético.
Qual seria a reação do pai de Eduard, um dos mais conhecidos embaixadores da jovem republica eslovena, um dos artífices das delicadas negociações com a Yugoslavia, no começo dos anos 90? Afinal, este homem havia conseguido trabalhar durante anos para Belgrado, sobrevivera aos seus detratores - que o acusavam de haver servido ao inimigo – e continuava no corpo diplomático, só que desta vez representando um país diferente. Era um homem poderoso e influente, temido por todos.
Dr. Igor se preocupou um instante – como antes se preocupara com o escudo do chaveiro – mas logo afastou o pensamento da cabeça: para o Embaixador, tanto fazia que seu filho tivesse uma boa ou má aparência; não pretendia leva-lo a festas oficiais, ou fazer com que o acompanhasse pelos lugares do mundo
onde era designado como representante do Governo. Eduard, estava em Villete - e ali continuaria para sempre, ou pelo tempo que o pai continuasse ganhando aqueles salários enormes.
Dr. Igor decidiu que retiraria a alimentação intravenosa, e deixaria Eduard definhar mais um pouco, até que tivesse, por ele mesmo, vontade de comer. Se a situação piorasse, faria um relatório e passaria a responsabilidade ao conselho de médicos que administrava Villete. “Se você não quiser entrar em apuros, sempre divida a responsabilidade”, lhe ensinara seu pai, também ele um médico que tivera varias mortes em suas mãos, mas nenhum problema com as autoridades.
Uma vez receitada a interrupção do medicamento de Eduard, Dr. Igor passou para o próximo caso: o relatório dizia que a paciente Zedka Mendel já terminara seu período de tratamento, e podia receber alta. Dr. Igor queria conferir com seus próprios olhos: afinal, nada pior para um médico que receber reclamações da família dos doentes que passavam por Villete. E isso quase sempre acontecia - depois de um período num hospital para doentes mentais, raramente um paciente conseguia adaptar-se novamente à vida normal.
Não era culpa do sanatório. Nem de nenhum de todos os sanatórios espalhados – só o bom Deus sabia – pelos quatro cantos do mundo, onde o problema de readaptação dos internos era exatamente igual. Assim como a prisão nunca corrigia o preso – apenas o ensinava a cometer mais crimes, os sanatórios faziam com que os doentes se acostumassem com um mundo totalmente irreal, onde tudo era permitido, e ninguém precisava ter responsabilidade por seus atos.
De modo que só restava uma saída: descobrir a cura para a Insanidade. E o Dr. Igor estava empenhado nisso até a raiz dos cabelos,, desenvolvendo uma tese que iria revolucionar o meio psiquiátrico. Nos asilos, os doentes provisórios em convivência com pacientes irrecuperáveis iniciavam um processo de degeneração social, e uma vez que era impossível deter esta roda. A tal Zedka Mendel terminaria voltando ao hospital – desta vez por vontade própria, queixando-se de males inexistentes, só para estar perto de pessoas que pareciam compreende-la melhor que o mundo lá fora.
Se ele descobrisse, porém, como combater o Vitríolo – para o Dr. Igor, o veneno responsável pela loucura - seu nome entraria para a História, e a Eslovenia seria definitivamente colocada no mapa. Naquela semana, uma chance caída dos céus aparecera, sob a forma de uma suicida potencial; ele não estava disposto a desperdiçar esta oportunidade por nenhum dinheiro do mundo.
Dr. Igor ficou contente. Embora, por razões econômicas, ainda fosse obrigado a aceitar tratamentos que há muito tinham sido condenados pela medicina – como o choque de insulina – também, por razões econômicas, Villete estava inovando o tratamento psiquiátrico. Além de possuir tempo e elementos para a pesquisa do Vitríolo, ele ainda contava com o apoio dos donos para manter no asilo o grupo chamado de “a fraternidade”. Os acionistas da instituição tinham permitido que fosse tolerada – note bem, não encorajada, mas tolerada – uma internação maior do que o tempo necessário. Eles argumentavam que, por razões humanitárias, devia-se dar ao recem-curado a opção de decidir qual o melhor momento de reintegrar-se ao mundo, e isso permitira que um grupo de pessoas resolvesse permanecer em Villete, como em um hotel seletivo , ou um clube onde se reúnem aqueles que tem algumas afinidades em comum. Assim, o Dr. Igor conseguia manter loucos e sãos no mesmo ambiente, fazendo com que os últimos influenciassem positivamente os primeiros. Para evitar que as coisas degenerassem – e os loucos terminassem contagiando negativamente os que tinham sido curados, todo membro da Fraternidade devia sair do sanatório pelo menos uma vez por dia.
Dr. Igor sabia que os motivos dados pelos acionistas para permitir a presença de pessoas curadas no asilo – “razões humanitárias”, diziam – era apenas uma desculpa. Eles tinham medo de que Lubljana, a pequena e charmosa capital da Eslovenia, não tivesse um numero suficiente de loucos ricos, capazes de sustentar toda aquela estrutura cara e moderna. Além do mais, o sistema de saúde pública contava com asilos de primeira qualidade, o que deixava Villete em situação de desvantagem diante do mercado de problemas mentais.
Quando os acionistas transformaram o antigo quartel em sanatório, tinham como publico alvo os possíveis homens e mulheres afetados pela guerra com a Yugoslávia. Mas a guerra durara muito pouco. Os acionistas apostaram que a guerra ia voltar, mas não voltou.
Depois, em recente pesquisa, descobriram que as guerras faziam suas vítimas mentais, mas em escala muito menor que a tensão, o tédio, as enfermidades congênitas, a solidão, e a rejeição. Quando uma coletividade tinha um grande problema para enfrentar – como no caso de uma guerra, ou de uma hiperinflação, ou de uma peste - notava-se um pequeno aumento no número de suicídios, mas uma grande diminuição nos casos de depressão, paranóia, psicoses. Estes voltavam a seus índices normais logo que tal problema havia sido ultrapassado, indicando – assim entendia o Dr. Igor – que o ser humano só se dá ao luxo de ser louco quando tem condições para isso.
Diante de seus olhos, estava outra pesquisa recente, desta vez vinda do Canadá – eleito recentemente por um jornal americano como o país do mundo onde o nível de vida era mais elevado. O Dr. Igor leu:
* De acordo com a Statistics Canadá, já sofreram algum tipo de doença mental:
40% das pessoas entre 15 e 34 anos;
33% das pessoas entre 35 e 54 anos;
20% das pessoas entre 55 e 64 anos.
* Estima-se que um em cada cinco indivíduos sofra algum tipo de desordem psiquiátrica.
+ Um em cada oito canadenses serão hospitalizados por distúrbios mentais pelo menos uma vez na vida.
“Excelente mercado, melhor que aqui”, pensou. “Quanto mais felizes as pessoas podem ser, mais infelizes ficam”.
Dr. Igor analisou mais alguns casos, ponderando cuidadosamente sobre os que devia dividir com o Conselho, e os que podia resolver sozinho. Quando terminou, o dia já tinha raiado por completo, e ele apagou a luz.
Em seguida mandou entrar a primeira visita – a mãe da tal paciente que tentara o suicídio.
- Sou a mãe de Veronika. Qual o estado de minha filha?
O Dr. Igor pensou se devia ou não dizer-lhe a verdade, e poupa-la de surpresas inúteis – afinal de contas, tinha uma filha com o mesmo nome. Mas decidiu que era melhor ficar calado.
- Ainda não sabemos – mentiu. – Precisamos de mais uma semana.
- Não sei porque Veronika fez isso – dizia a mulher a sua frente, em prantos. – Nós somos pais carinhosos, tentamos dar a ela, a custa de muito sacrifício, a melhor educação possível. Embora tivéssemos nossos problemas conjugais, mantivemos nossa família unida, como exemplo de perseverança diante das adversidades. Ela tem um bom emprego, não é feia, e mesmo assim...
- ... e mesmo assim tentou matar-se – interrompeu o Dr. Igor. – Não fique surpresa, minha senhora, é assim mesmo. As pessoas são incapazes de entender a felicidade. Se desejar, posso lhe mostrar as estatísticas do Canadá.
- Canadá?
A mulher olhou-o com surpresa. Dr. Igor viu que havia conseguido distraí-la, e continuou.
- Veja bem: a senhora vem até aqui não para saber com vai sua filha, mas para desculpar-se pelo fato de que ela tentou cometer suicídio. Quantos anos ela tem?
-Vinte e quatro.
- Ou seja: uma mulher madura, vivida, que já sabe bem o que deseja, e é capaz de fazer suas escolhas. O que isso tem a ver com seu casamento, ou com o sacrifício que a senhora e seu marido fizeram? Há quanto tempo ela mora sozinha?
- Seis anos.
- Está vendo? Independente até a raiz da alma. Mesmo assim, porque um médico austríaco – Dr. Sigmund Freud, tenho certeza que a Sra. já ouviu falar dele – escreveu sobre estas relações doentias entre pais e filhos, até hoje todo mundo se culpa de tudo. Os índios acham que o filho que se tornou assassino é uma vítima da educação de seu pais? Responda.
- Não tenho a menor idéia – respondeu a mulher, cada vez mais surpresa com o médico. Talvez ele tivesse sido contagiado pelos próprios pacientes.
- Pois eu vou lhe dizer a resposta – disse o Dr. Igor. – Os índios acham que o assassino é culpado, e não a sociedade, nem seus pais, nem seus antepassados. Os japoneses cometem suicídio porque um filho deles resolveu se drogar e sair atirando? A resposta também é a mesma: Não! E olha que, segundo me consta, os japoneses cometem suicídio por qualquer motivo; outro dia mesmo li uma noticia de que um jovem se matou porque não conseguiu passar no vestibular.
- Será que eu posso falar com a minha filha? – perguntou a mulher, que não estava interessada em japoneses, índios ou canadenses.
- Já, já – disse o Dr. Igor, meio irritado com a interrupção. – Mas antes, eu quero que a Sra. entenda uma coisa: afora alguns casos patológicos graves, as pessoas enlouquecem quando tentam fugir da rotina. A senhora entendeu?
- Entendi muito bem – respondeu. – E se o senhor está achando que não serei capaz de cuidar dela, pode ficar tranquilo: nunca tentei mudar a minha vida.
- Que bom – o Dr. Igor mostrava um certo alívio. – A senhora já imaginou um mundo onde, por exemplo, não fossemos obrigados a repetir todos os dias de nossas vidas a mesma coisa? Se resolvessemos, por exemplo, comer só na hora em que tivéssemos fome: como as donas de casa e os restaurantes se organizariam?
“Seria mais normal comer só quanto estivéssemos com fome”, pensou a mulher, que não disse nada, com medo que lhe proibissem falar com Veronika.
- Seria uma confusão muito grande – disse ela. – Eu sou dona de casa, e sei do que está falando.
- Então temos o café da manhã, o almoço, o jantar. Temos que acordar em determinada hora todos os dias, e descansar uma vez por semana. Existe o Natal para dar presentes, a páscoa para
passar três dias no lago. A senhora ficaria contente se o seu marido, só porque foi tomado de um súbito impulso de paixão, resolvesse fazer amor na sala?
“De que este homem está falando? Eu vim aqui ver minha filha!”
- Ficaria triste – respondeu ela, com todo cuidado, esperando ter acertado.
- Muito bem – bradou o Dr. Igor. – Lugar de fazer amor é na cama. Senão, estaremos dando mau exemplo e disseminando a anarquia.
- Posso ver minha filha? – interrompeu a mulher.
O Dr. Igor resignou-se; esta camponesa nunca ia entender do que estava falando, não estava interessada em discutir a loucura do ponto de vista filosófico – mesmo sabendo que sua filha tentara o suicídio para valer, e entrara em coma.
Tocou uma campainha, e sua secretária apareceu.
- Mande chamar a moça do suicídio – disse. – Aquela da carta aos jornais, dizendo que se matava para mostrar onde era a Eslovenia.
- Não quero vê-la. Eu já cortei os meus laços com o mundo.
Fora difícil dizer isso ali na sala de estar, na presença de todo mundo. Mas o enfermeiro tampouco fora discreto, e avisara em voz alta que sua mãe a estava esperando – como se fosse um assunto que interessasse a todos.
Não queria ver a mãe porque as duas iam sofrer. Era melhor que já a considerasse morta; Veronika sempre odiara as despedidas.
O homem desapareceu por onde viera, e ela voltou a olhar as montanhas. Depois de uma semana, o sol tinha finalmente retornado – e ela já sabia isso desde a noite anterior, porque a lua lhe dissera, enquanto tocava piano.
“Não, isso é loucura, estou perdendo o controle. os astros não falam – exceto para aqueles que se dizem astrólogos. Se a lua conversou com alguém, foi com aquele esquizofrênico.”
Mal terminara de pensar isso, sentiu uma pontada no peito, e um braço ficou dormente. Veronika viu o teto rodar: o ataque de coração!
Entrou numa espécie de euforia, como se a morte a libertasse do medo de morrer. Pronto, estava tudo acabado! Talvez sentisse alguma dor, mas o que eram cinco minutos de agonia, em troca de uma eternidade em silêncio? A única atitude que tomou, foi a de fechar os olhos: o que mais lhe horrorizava era ver, nos filmes, os mortos de olhos abertos.
Mas o ataque de coração parecia ser diferente daquilo que imaginara; a respiração começou a ficar difícil, e, horrorizada, Veronika começou a descobrir que estava prestes a experimentar o pior de seus medos: a asfixia. Ia morrer como se estivesse sendo enterrada viva, ou fosse puxada de repente para o fundo do mar.

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