terça-feira, 20 de outubro de 2009



“Na manhã seguinte, a população inteira bebeu, e todos enlouqueceram, menos o rei – que tinha um poço só para si e sua família, onde o feiticeiro não conseguira entrar. Preocupado, ele tentou controlar a população, baixando uma série de medidas de segurança e saúde pública: mas os policiais e inspetores haviam bebido a água envenenada, e acharam um absurdo as decisões do rei, resolvendo não respeita-las de jeito nenhum.
“Quando os habitantes daquele reino tomaram conhecimento dos decretos, ficaram convencidos de que o soberano enlouquecera, e agora estava escrevendo coisas sem sentido. Aos gritos, foram até o castelo e exigiram que renunciasse.
“Desesperado, o rei prontificou-se a deixar o trono, mas a rainha o impediu, dizendo: "vamos agora até a fonte, e beberemos também. Assim, ficaremos iguais a eles.”
“E assim foi feito: o rei e a rainha beberam a agua da loucura, e começaram imediatamente a dizer coisas sem sentido. Na mesma hora, os seus súditos se arrependeram: agora que o rei estava mostrando tanta sabedoria, por que não deixa-lo governando o país?
“O pais continuou em calma, embora seus habitantes se comportassem de maneira muito diferente de seus vizinhos. E o rei pode governar até o final dos seus dias.”
Veronika riu.
- Você não parece louca - disse.
- Mas sou, embora esteja sendo curada, porque o meu caso é simples: basta recolocar no organismo uma determinada substância química. Entretanto, espero que esta substancia resolva apenas o meu problema de depressão crônica; quero continuar louca, vivendo minha vida da maneira que sonho, e não da maneira que os outros desejam. Sabe o que existe lá fora, além dos muros de Villete?
- Gente que bebeu do mesmo poço.
- Exatamente – disse Zedka. – Acham que são normais, porque todos fazem a mesma coisa. Vou fingir que também bebi daquela água.
- Pois eu bebi, e é este, justamente, o meu problema. Nunca tive depressão, nem grandes alegrias, ou tristezas que durassem muito. Meus problemas são iguais aos de todo mundo.
Zedka ficou algum tempo em silencio.
- Você vai morrer, nos disseram.
Veronika hesitou um instante: podia confiar naquela estranha? Mas precisava arriscar.
- Só daqui há cinco, seis dias. Fico pensando se existe um meio de morrer antes. Se você, ou alguém aqui dentro conseguisse arranjar novos comprimidos, tenho certeza de que meu coração não aguentaria desta vez. Entenda o quanto estou sofrendo por ter que ficar esperando a morte, e me ajude.
Antes que Zedka pudesse responder, a enfermeira apareceu com uma injeção.
- Posso aplica-la eu mesma - disse. - Mas, dependendo de sua vontade, posso pedir aos guardas lá fora que me ajudem.
- Não gaste sua energia a toa – disse Zedka para Veronika. – Poupe suas forças, se quiser conseguir o que me pede.
Veronika levantou-se, voltou a sua cama, e deixou que a enfermeira cumprisse sua tarefa.






Foi seu primeiro dia normal num asilo de loucos. Saiu da enfermaria, tomou café no grande refeitório onde homens e mulheres comiam juntos. Reparou que, ao contrário do que mostravam nos filmes – escândalos, gritarias, pessoas fazendo gestos demenciais – tudo parecia envolto numa aura de silencio opressivo; parecia que ninguém desejava repartir seu mundo interior com estranhos.
Depois do café (razoável , não se podia culpar as refeições pela péssima fama de Villete) – saíram todos para um banho de sol. Na verdade, não havia sol algum – a temperatura estava abaixo de zero, e o jardim encontrava-se coberto de neve.
- Não estou aqui para conservar minha vida, mas para perde-la – disse Veronika a um dos enfermeiros.
- Mesmo assim, precisa sair para o banho de sol.
- Vocês é que são são loucos: não há sol!
- Mas há luz, e ela ajuda a acalmar os internos. Infelizmente nosso inverno dura muito; se não fosse assim, teríamos menos trabalho.
Era inútil discutir: saiu, caminhou um pouco, olhando tudo a sua volta, e procurando disfarçadamente uma maneira de fugir. O muro era alto, como exigiam os construtores de quartéis antigos, mas as guaritas para sentinelas estavam desertas. O jardim era contornado por prédios de aparência militar, que hoje abrigavam enfermarias masculinas, femininas, os escritórios de administração, e as dependências dos empregados. Ao final de uma primeira e rápida inspeção, notou que o único lugar realmente vigiado era o portão principal, onde todos que entravam e saiam tinham suas identidades verificadas por dois guardas.
Tudo parecia estar voltando ao lugar no seu cérebro. Para fazer um exercício de memória, começou a tentar lembrar-se de pequenas coisas – como o lugar onde deixava a chave do seu quarto, o disco que acabara de comprar, o mais recente pedido que lhe fizeram na biblioteca.
- Sou Zedka - disse uma mulher, se aproximando.
Na noite anterior, não pudera ver seu rosto – estivera agachada ao lado da cama todo o tempo da conversa. Ela devia ter aproximadamente 35 anos, e parecia absolutamente normal.
- Espero que a injeção não tenha causado muito problema. Com o tempo o organismo se acostuma, e os calmantes perdem o efeito.
- Estou bem.
- Aquela nossa conversa ontem a noite...o que você me pediu, lembra?
- Perfeitamente.
Zedka pegou-a por um braço, e começaram a caminhar juntas, por entre as muitas arvores sem folhas do pátio. Além dos muros, podia-se ver as montanhas desaparecendo nas nuvens.
- Está frio, mas é uma bonita manhã - disse Zedka. - É curioso, mas minha depressão nunca aparecia em dias como este, nublado, cinzento, frio. Quando o tempo estava assim, eu sentia que a natureza estava de acordo comigo, mostrava minha alma. Por outro lado, quando aparecia o sol, as crianças começavam a brincar nas ruas, e todos estavam contentes com a beleza do dia, eu me sentia péssima. Como se fosse injusto que toda aquela exuberância se mostrasse, e eu não pudesse participar.
Com delicadeza, Veronika soltou-se do braço da mulher. Não gostava de contatos físicos.
- Você interrompeu sua frase. Você estava falando do meu pedido.
- Tem um grupo aqui dentro. São homens e mulheres que já podiam ter alta, estar em casa - mas não querem sair. As razões para isto são muitas: Villete não é tão mal como dizem, embora esteja longe de ser um hotel de cinco estrelas. Aqui dentro, todos podem dizer o que pensam, fazer o que desejam, sem ouvir qualquer tipo de crítica: afinal de contas, estão em um hospício. Então, na hora das inspeções do governo, estes homens e mulheres comportam-se como se estivessem num grau de insanidade perigosa, já que alguns deles estão aqui às custas do Estado. Os médicos sabem disso, mas parece que existe uma ordem dos donos, deixando que esta situação permaneça como está – já que existem mais vagas do que doentes.
- Eles podem arranjar os comprimidos?
- Procure entrar em contacto com eles; chamam seu grupo de A Fraternidade.
Zedka apontou para uma mulher com cabelos brancos, que conversava animadamente com outras mulheres mais jovens.
- Seu nome é Mari, e ela é da Fraternidade. Pergunte a ela.
Veronika começou a andar na direção de Mari, mas Zedka a interrompeu:
- Agora não: ela está se divertindo. Não irá interromper o que lhe dá prazer, só para ser simpática com uma estranha.Se ela reagir mal, você nunca mais você terá uma chance de aproximar-se. Os loucos sempre acreditam na primeira impressão.
Varonika riu com a entonação que Zedka dera para a palavra loucos. Mas ficou inquieta, porque aquilo tudo estava parecendo normal, bom demais. Depois de tantos anos indo do trabalho para o bar, do bar para a cama de um namorado, da cama para o quarto, do quarto para a casa da mãe – agora ela estava vivendo uma experiência com a qual nunca sonhara: o asilo, a
loucura, o hospício. Onde as pessoas não sentiam vergonha de confessar-se loucas. Onde ninguém interrompia o que gostava, só para ser simpático com os outros.
Começou a duvidar se Zedka estava falando sério, ou se era uma maneira que os doentes mentais adotam para fingir que vivem num mundo melhor que os outros. Mas que importância tinha isso? Estava vivendo algo interessante, diferente, jamais esperado: imagine um lugar onde as pessoas se fingem de loucas, para fazer exatamente o que querem?
Neste exato momento, o coração de Veronika deu uma pontada. A conversa com o médico voltou imediatamente ao seu pensamento, e ela se assustou.
- Quero andar sozinha - disse para Zedka. Afinal de contas, era também uma louca, e não precisava ficar querendo agradar ninguém.
A mulher se afastou, e Veronika ficou contemplando as montanhas além dos muros de Villete. Uma leve vontade de viver pareceu surgir, mas Veronika a afastou com determinação.
“Preciso arranjar logo os comprimidos”.
Refletiu sobre sua situação ali; estava longe de ser a ideal. Mesmo que lhe dessem a possibilidade de viver todas as loucuras que tinha vontade, não saberia o que fazer.
Nunca tivera nenhuma loucura.
Depois de algum tempo no jardim, foram até o refeitório e almoçaram. Em seguida, os enfermeiros conduziram homens e mulheres até uma gigantesca sala de estar, com muitos ambientes – mesas, cadeiras, sofás, um piano, uma televisão, e amplas janelas de onde se podia ver o céu cinzento e as nuvens baixas. Nenhuma delas tinha grades, porque a sala dava para o jardim. As portas estavam fechadas por causa do frio, mas bastava girar a maçaneta, e poderia sair para caminhar de novo entre as árvores.
A maior parte das pessoas foi para a frente da televisão. Outros olhavam o vazio, alguns conversavam em voz baixa consigo mesmo – mas quem não fizera isso em algum momento de sua vida? Veronika reparou que a mulher mais velha, Mari, estava agora junto a um grupo maior, num dos cantos da gigantesca sala. Alguns dos internos passeavam ali perto, e Veronika tentou juntou-se a eles: queria escutar o que estavam dizendo.
Procurou disfarçar ao máximo suas intenções. Mas quando chegou perto, eles se calaram e – todos juntos – olharam para ela.
- O que você quer? - disse um senhor idoso, que parecia ser o líder da Fraternidade (se é que tal grupo realmente existia, e Zedka não era mais louca do que aparentava).
- Nada, Só estava passando.
Todos se entreolharam, e fizeram alguns gestos demenciais com a cabeça. Um comentou com o outro: “ela só estava passando!” Outro repetiu, em voz mais alta, e – em pouco tempo – todos começaram a gritar a mesma frase.
Veronika não sabia o que fazer, e ficou paralisada de medo. Um enfermeiro, forte e mal encarado, veio saber o que estava acontecendo.
- Nada - respondeu um do grupo. - Ela só estava passando. Está parada aí, mas vai continuar a passar!
O grupo inteiro caiu na gargalhada. Veronika assumiu um ar irônico, sorriu, deu meia-volta e afastou-se, para que ninguém notasse que seus olhos se enchiam de lágrimas. Saiu direto para o jardim, sem agasalho. Um enfermeiro tentou convence-la a voltar, mas logo apareceu outro, que sussurrou algo – e os dois a deixaram em paz, no frio. Não adiantava cuidar da saúde de uma pessoa condenada.
Estava confusa, tensa, irritada consigo mesma. Jamais se deixara levar por provocações; aprendera desde cedo que era preciso manter o ar frio, distante, sempre que uma nova situação que se apresentasse. Aqueles loucos, entretanto, tinham conseguido fazer com que tivesse vergonha, medo, raiva, vontade de mata-los, de feri-los com palavras que não ousara dizer.
Talvez os comprimidos – ou o tratamento para tira-la da coma – a tivessem transformado numa mulher frágil, incapaz de reagir por si mesma. Já enfrentara situações muito piores na sua adolescência, e, pela primeira vez, não conseguira controlar o choro! Precisava voltar a ser quem era, saber reagir com ironia, fingir que as ofensas nunca a atingiam, pois era superior a todos. Quem, daquele grupo, tivera coragem de desejar a morte? Quais daquelas pessoas podia querer lhe ensinar sobre a vida, se estavam todos escondidos atrás dos muros de Villete? Nunca iria depender da ajuda deles para nada – mesmo que tivesse que esperar cinco ou seis dias para morrer.
“Um dia já passou. Sobram apenas quatro ou cinco”.
Andou um pouco, deixando que o frio abaixo de zero entrasse por seu corpo e acalmasse o sangue que corria depressa, o coração que batia rápido demais.
“Muito bem, aqui estou eu, com as horas literalmente contadas, e dando importância para os comentários de gente que nunca vi, e que em breve nunca mais verei. E eu sofro, me irrito, quero atacar e defender. Para que perder tempo com isso? “
A realidade, porém, é que estava gastando o pouco tempo que lhe sobrava, para lutar por seu espaço num ambiente estranho, onde era preciso resistir, ou os outros impunham suas regras.
“Não é possível. Eu nunca fui assim. Eu nunca lutei por bobagens. ”
Parou no meio do jardim gelado. Justamente porque achava que tudo era bobagem, ela terminara aceitando o que a vida lhe tinha naturalmente imposto. Na adolescência, achava que era cedo demais para escolher; agora, na juventude, se convencera que era tarde demais para mudar.
E onde gastara toda a sua energia, até o momento? Tentando fazer com que tudo em sua vida continuasse o mesmo. Sacrificara muitos de seus desejos, para que seus pais a continuassem amando como a amavam quando criança, embora sabendo que o verdadeiro amor se modifica com o tempo, e cresce, e descobre novas maneiras de se expressar. Certo dia, quando escutara a mãe - aos prantos – lhe dizer que o casamento havia acabado, Veronika fora em busca do pai, chorara, ameaçara, e finalmente arrancara a promessa de que ele não sairia de casa – sem imaginar o preço alto que os dois deviam estar pagando por causa disso.
Quando resolveu arranjar um emprego, deixou de lado uma proposta tentadora numa companhia que acabava de se instalar em seu recem-criado país, para aceitar o trabalho na biblioteca pública, onde o dinheiro era pouco, mas era seguro. Ia trabalhar todos os dias, no mesmo horário, sempre deixando claro aos seus chefes de que não a vissem como uma ameaça, ela estava satisfeita, não pretendia lutar para crescer: tudo que desejava era o salário no final do mês.
Alugou o quarto no convento porque as freiras exigiam que todas as inquilinas voltassem em determinada hora, e depois passavam a chave na porta: quem ficasse do lado de fora, tinha que dormir na rua. Ela sempre podia dar uma desculpa verdadeira aos namorados, para não ser obrigada a passar a noite em hotéis ou leitos estranhos.
Quando sonhava em casar, imaginava-se sempre num pequeno chalé fora de Lubljana, com um homem que fosse diferente do seu pai, que ganhasse apenas o suficiente para sustentar a família, que ficasse contente com o fato de que os dois estavam juntos numa casa com a lareira acesa, olhando as montanhas cobertas de neve.
Educara a si mesmo para dar aos homens uma quantia exata de prazer – nem mais, nem menos, apenas o necessário. Não sentia raiva de ninguém, porque isso significava ter que reagir, combater um inimigo – e depois ter que aguentar consequências imprevisíveis, como vingança.
Quando conseguiu quase tudo o que desejava na vida, chegou a conclusão que a sua existência não tinha sentido, porque todos os dias eram iguais. E decidira morrer.

Veronika tornou a entrar, e foi direto ao grupo reunido em um dos cantos da sala. As pessoas conversavam, animadas, mas silenciaram assim que ela chegou.
Foi direto até o homem mais idoso, que parecia ser o chefe. Antes que alguém pudesse dete-la, deu-lhe um sonoro tapa no rosto.
- Vai reagir? – perguntou alto, para que todos na sala ouvissem. – Vai fazer alguma coisa?
- Não. - O homem passou a mão no rosto. Um pequeno filete de sangue escorreu do seu nariz. – Você não vai nos perturbar por muito tempo.
Ela deixou a sala de estar e caminhou para a sua enfermaria, com ar triunfante. Tinha feito algo que jamais fizera em sua vida.

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