Veronika Decide Morrer

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Três dias se passaram deste o incidente com o grupo que Zedka chamava de “A Fraternidade”. Arrependera-se do tapa - não por medo da reação do homem, mas porque fizera algo diferente. Em breve, podia terminar convencida de que a vida valia a pena, um sofrimento inútil – já que teria que partir deste mundo de qualquer maneira.
Sua única saída foi afastar-se de tudo e de todos, tentar de todas as maneiras ser como era antes, obedecer as ordens e regulamentos de Villete. Adaptou-se a rotina imposta pela casa de saúde: acordar cedo, café da manhã, passeio no jardim, almoço, sala de estar, novo passeio no jardim, ceia, televisão, e cama.
Antes de dormir, uma enfermeira sempre aparecia com medicamentos. Todas as outras mulheres tomavam comprimidos, ela era a única a quem aplicavam uma injeção. Nunca reclamou; apenas quis saber porque lhe davam tanto calmante, já que nunca tivera problemas para dormir. Explicaram que a injeção não era um sonífero, mas um remédio para o seu coração.
E assim, obedecendo a rotina, os dias do hospício começaram a ficar iguais. Quando ficam iguais, passam mais rápido: mais dois ou três dias, e não seria necessário escovar os dentes ou pentear o cabelo. Veronika percebia o seu coração enfraquecendo rapidamente: perdia o fôlego com facilidade, sentia dores no peito, não tinha apetite, e ficava tonta cada vez que fazia qualquer esforço.
Depois do incidente com a Fraternidade, chegara a pensar algumas vezes: “se eu tivesse uma escolha, se tivesse compreendido antes que meus dias eram iguais porque eu assim os desejava, talvez...”



Mas a resposta era sempre a mesma: “não há talvez, porque não há escolha”. E a paz interior voltava, porque tudo estava determinado.
Neste período, desenvolveu uma relação (não uma amizade, porque amizade exige uma longa convivência, e isso seria impossível) com Zedka. Jogavam baralho – o que ajuda o tempo a passar mais rápido – e as vezes caminhavam juntas, em silêncio, pelo jardim.
Na manhã daquele dia, logo depois do café, todos saíram para o “banho de sol” – conforme exigia o regulamento. Um enfermeiro, porém, pediu que Zedka voltasse a enfermaria, pois era o dia do “tratamento”.
Veronika estava tomando café com ela, e escutou o comentário.
- O que é “tratamento”?
- É um processo antigo, da década dos sessenta, mas os médicos acham que pode acelerar a recuperação. Você quer ver?
- Você disse que tinha depressão. Não basta tomar o remédio para repor a tal substancia que falta?
- Você quer ver? – insistiu Zedka.
Ia sair da rotina, pensou Veronika. Ia descobrir novas coisas, quando não precisava aprender mais nada – apenas ter paciência. Mas sua curiosidade foi mais forte, e ela fez que sim com a cabeça.
- Isto não é uma exibição - reclamou o enfermeiro.
- Ela vai morrer. E não viveu nada. Deixa que venha conosco.



Veronika assistiu a mulher ser amarrada na cama, sempre com um sorriso nos lábios.
- Conta o que está acontecendo - disse Zedka para o enfermeiro. – Ou ela vai ficar assustada.
Ele virou-se e mostrou uma injeção. Parecia feliz de ser tratado como um médico, que explica aos estagiários os procedimentos corretos e os tratamentos adequados.
- Nesta seringa, está uma dose de insulina – disse, dando as suas palavras um tom grave e técnico. – É usada por diabéticos para combater as altas doses de açúcar. Entretanto, quando a dose é muito mais elevada que a habitual, a queda na taxa de açúcar provoca o estado de coma.
Ele bateu levemente na agulha, retirou o ar, e aplicou-o na veia do pé direito de Zedka.
- É isso que vai acontecer agora. Ela vai entrar num coma induzido. Não se assuste se seus olhos ficarem vidrados, e não espere que a reconheça enquanto estiver sob o efeito da medicação.
- Isso é horroroso, desumano. As pessoas lutam para sair, e não para entrar em coma.
- As pessoas lutam para viver, e não para cometerem suicídio – respondeu o enfermeiro, mas Veronika ignorou a provocação. – E o estado de coma deixa o organismo em repouso; suas funções são drásticamente reduzidas, a tensão existente desaparece.
Enquanto falava, injetava o líquido, e os olhos de Zedka iam perdendo o brilho.
- Fique tranquila – dizia Veronika para ela. – Você é absolutamente normal, a história que você me contou sobre o rei...
- Não perca seu tempo. Ela já não pode mais ouvi-la.
A mulher deitada na cama, que minutos antes parecia lúcida e cheia de vida, agora tinha os olhos fixos num ponto qualquer, e um liquido espumante saindo de sua boca.
- O que você fez? - gritou para o enfermeiro.
- Meu dever.
Veronika começou a chamar por Zedka, a gritar, a ameaçar com a polícia, os jornais, os direitos humanos.
- Fique calma. Mesmo estando num sanatório, é preciso respeitar algumas regras.
Ela viu que o homem estava falando sério, e teve medo. Mas como não tinha mais nada a perder, continuou gritando.



De onde estava, Zedka podia ver a enfermaria com todos os leitos vazios – exceto um, onde repousava o seu corpo amarrado, com uma menina olhando espantada para ele. A menina não sabia que aquela pessoa na cama ainda tinha suas funções biológicas funcionando perfeitamente, mas sua alma estava no ar, quase tocando o teto, experimentando uma profunda paz.
Zedka estava fazendo uma viagem astral – algo que tinha sido uma surpresa durante o primeiro choque de insulina. Não tinha comentado com ninguém; estava ali apenas para curar uma depressão, e pretendia deixar aquele lugar para sempre, assim que suas condições permitissem.Se começasse a comentar que havia saído do corpo, pensariam que estava mais louca do que quando entrara para Villete. Entretanto, assim que voltara ao corpo, começara a ler sobre aqueles dois temas: o choque de insulina, e a estranha sensação de flutuar no espaço.
Não havia muita coisa sobre o tratamento: tinha sido aplicado pela primeira vez por volta de 1930, mas fora completamente banido de hospitais psiquiátricos, pela possibilidade der causar danos irreversíveis no paciente. Uma vez, durante uma sessão de choque, visitara em corpo astral o escritório do Dr. Igor, justamente no momento em que ele discutia o tema com alguns dos donos do asilo. “É um crime!” dizia ele. “Mas é mais barato e mais rápido!” respondera um dos acionistas. “Além disso, quem se interessa por direitos de louco? Ninguém vai reclamar nada!”
Mesmo assim, alguns médicos ainda o consideravam como uma forma rápida de tratar a depressão. Zedka procurara – e pedira emprestado – tudo quanto era tipo de texto que tratasse do choque insulínico, principalmente o relato de pacientes que já haviam passado por aquilo. A história era sempre a mesma: horrores e mais horrores, sem que nenhum deles tivesse experimentado qualquer coisa parecida com que ela vivia neste momento.
Concluiu – com toda razão – que não havia qualquer relação entre a insulina e a sensação de que sua consciência saía do corpo. Muito pelo contrário, a tendência daquele tipo de tratamento era diminuir a capacidade mental do paciente.
Começou a pesquisar sobre a existência da alma, passou por alguns livros de ocultismo, até que um dia terminou encontrando uma vasta literatura que descrevia exatamente o que
ela estava experimentando: chamava-se “viagem astral”, e muitas pessoas já haviam passado por isso. Algumas resolveram descrever o que haviam sentido, e outras chegaram mesmo a desenvolver técnicas [ara provocar a saída do corpo. Zedka agora conhecia estas técnicas de cor, e as utilizava todas as noites, para ir onde queria.
Os relatos das experiências e visões variaram, mas todos tinham alguns pontos em comum; o estranho e irritante ruído que precede a separação do corpo e do espírito, seguido do choque, de uma rápida perda de consciência, e logo a paz e a alegria de estar flutuando no ar, presa por um cordão prateado ao corpo – um cordão que podia se esticar indefinidamente, embora corressem lendas ( nos livros, é claro) de que a pessoa morreria se deixasse o tal fio de prata arrebentar.
Sua experiência, porém, mostrara que podia ir tão longe quanto quisesse, e o cordão não se rompia nunca. Mas, de uma maneira geral, os livros tinham sido muito úteis para ensina-la a aproveitar cada vez mais a viagem astral. Aprendera, por exemplo, que quando quisesse mudar de um lugar para o outro, tinha que desejar projetar-se no espaço, mentalizando onde queria chegar. Ao invés de fazer um percurso como os aviões – que saem de um lugar e percorrem determinada distancia até chegar a outro ponto – a viagem astral era feita por túneis misteriosos. Mentalizava-se um lugar, entrava-se no tal túnel a uma velocidade espantosa, e local desejado aparecia.
Fora também através dos livros que perdera o medo das criaturas que habitavam o espaço. Hoje não havia ninguém na enfermaria, mas a primeira vez que saíra do seu corpo encontrara muita gente olhando, divertindo-se com sua cara de surpresa.
Sua primeira reação fora pensar que eram mortos, fantasmas habitavam o local. Depois, com ajuda dos livros e da própria experiência, deu-se conta que, embora alguns espíritos desencarnados vagassem por ali, havia entre eles muita gente tão viva quanto ela – que desenvolvera a técnica de sair do corpo, ou que não tinha consciência do que estava acontecendo, porque – em algum lugar do mundo – dormiam profundamente, enquanto seus espíritos vagavam livres pelo mundo.
Hoje – por ser sua última viagem astral com insulina, pois tinha acabado de visitar o escritório do Dr. Igor, e sabia que ele estava prestes a lhe dar alta – ela decidira ficar passeando por Villete. Do momento em que cruzasse a porta de saída, nunca mais voltaria ali, nem mesmo em espírito, e queria despedir-se agora.
Despedir-se. Esta era a parte mais difícil: uma vez num asilo, a pessoa acostuma-se com a liberdade que existe no mundo da loucura, e termina ficando viciada. Já não tem mais que assumir responsabilidades, lutar pelo pão de cada dia, cuidar de coisas que são repetitivas e aborrecidas; pode ficar horas olhando um quadro ou fazendo os desenhos mais absurdos possíveis. Tudo é
tolerável porque – afinal de contas – a pessoa é doente mental. Como ela própria tivera ocasião de experimentar, a maior parte dos internos apresenta uma grande melhora assim que pisa num hospício: já não precisa ficar escondendo seus sintomas, e o ambiente “familiar” os ajuda a aceitar suas próprias neuroses e psicoses.
No início, Zedka ficara fascinada por Villete, e chegou a cogitar, quando estivesse curada, em participar da Fraternidade. Mas entendeu que, com alguma sabedoria, podia continuar fazendo lá fora tudo o que gostaria de fazer, enquanto cuidava dos desafios da vida diária. Bastava manter, como dissera alguém, a loucura controlada. Chorar, preocupar-se, ficar irritada como qualquer ser humano normal, sem nunca esquecer que, lá em cima, seu espírito está rindo de todas as situações difíceis.
Em breve estaria de volta a sua casa, aos filhos, ao marido; e esta parte da vida que também tem seus encantos. Certamente teria dificuldade em encontrar trabalho – afinal, numa cidade pequena como Lubljana as histórias correm com rapidez, e sua internação em Villete já era do conhecimento de muita gente. Mas o seu marido ganhava para o suficiente sustentar a família, e ela podia aproveitar o tempo vago para continuar a fazer suas viagens astrais, – sem a perigosa influência da insulina.
Só uma coisa não queria jamais experimentar de novo: o motivo que a trouxera para Villete.
Depressão.
O médicos diziam que uma substância recém-descoberta, a serotonina, era a responsável pelo estado de espírito do ser humano. A falta de serotonina interferia na capacidade de concentrar-se no trabalho, dormir, comer, e desfrutar dos momentos agradáveis da vida. Quando esta substância estava completamente ausente, a pessoa sentia desesperança, pessimismo, sensação de inutilidade, cansaço exagerado, ansiedade,dificuldades para tomar decisões, e terminava mergulhando numa tristeza permanente, que a conduzia à uma apatia completa, ou ao suicídio.
Outros médicos, mais conservadores, alegavam que mudanças drásticas na vida de alguém– como troca de país, perda de um ente querido, divórcio, aumento de exigências no trabalho ou na família – eram responsáveis pela depressão. Alguns estudos modernos, baseados no número de internações no inverno e no verão, apontavam a falta de luz solar como um dos elementos causadores da depressão.
No caso de Zedka, porém, as razões eram mais simples do que todos supunham: um homem escondido no seu passado. Ou melhor: a fantasia que criara em torno de um homem que conhecera há muito tempo atrás.
Que coisa boba. Depressão, loucura por um homem que nem sequer sabia mais onde morava, pelo qual se apaixonara perdidamente em sua juventude – já que, como todas as outras moças de sua idade, Zedka era uma pessoa absolutamente normal, e precisava passar pela experiência do Amor Impossível.
Só que, ao contrário de suas amigas, que apenas sonhavam com o Amor Impossível, Zedka resolvera ir mais longe: tentar conquista-lo. Ele morava do outro lado do oceano, ela vendera tudo para ir ao seu encontro. Ele era casado, ela aceitou o papel de amante, fazendo planos secretos para um dia conquista-lo como marido. Ele não tinha tempo nem para si mesmo, mas ela resignou-se a passar dias e noites no quarto do hotel barato, esperando suas raras chamadas telefônicas.
Apesar de estar disposta a suportar tudo, em nome do amor, a relação não dera certo. Ele nunca dissera isso diretamente, mas um dia Zedka entendeu que já não era bem-vinda, e voltara para a Eslovénia.
Passou alguns meses alimentando-se mal, recordando cada instante que estiveram juntos, revendo milhares de vezes os momentos de alegria e prazer na cama, tentando descobrir alguma pista que lhe permitisse acreditar no futuro daquela relação. Seus amigos ficaram preocupados, mas algo no coração de Zedka dizia que aquilo era passageiro: o processo de crescimento de uma pessoa exige certo preço, que ela estava pagando sem reclamar. E assim foi: certa manhã acordou com uma imensa vontade de viver, alimentou-se há tempo não fazia, e saiu para arranjar um emprego.
Conseguiu não apenas o emprego, mas as atenções de um jovem bonito, inteligente, cortejado por muitas mulheres. Um ano depois, estava casada com ele.
Despertou a inveja e o aplauso das amigas. Os dois foram morar numa casa confortável, com o quintal dando para o rio que cruza Lubljana. Tiveram filhos, e viajavam para a Áustria ou para a Itália durante o verão.
Quando a Eslovénia resolveu separar-se da Yugoslávia, ele fora convocado para o exército. Zedka era sérvia – ou seja, “o inimigo”- e sua vida ameaçou entrar em colapso. Nos dez dias de tensão que se seguiram, com as tropas prontas para enfrentar-se - e ninguém sabendo direito qual o resultado da declaração de independência, e do sangue que precisava ser derramado por causa dela - Zedka deu-se conta do seu amor. Passava o tempo inteiro rezando para um Deus que até então lhe parecera distante, mas que agora era a sua única saída: prometeu aos santos e anjos qualquer coisa para ter seu marido de volta.
E assim foi. Ele retornou, os filhos puderam ir a escolas que ensinavam o idioma esloveno, e a ameaça de guerra moveu-se para a vizinha república da Croácia.


Três anos se passaram. A guerra da Yugoslávia com a Croácia moveu-se para a Bósnia, e começaram a aparecer denúncias de massacres cometidos pelos sérvios. Zedka achava aquilo injusto – julgar criminosa toda uma nação, por causa dos desvarios de alguns alucinados. Sua vida passou a ter um sentido que nunca esperara: defendeu com orgulho e bravura o seu povo - escrevendo em jornais, aparecendo na televisão, organizando conferencias. Nada daquilo dera resultado, e até hoje os estrangeiros ainda pensavam que todos os sérvios eram responsáveis pelas atrocidades, mas Zedka sabia que tinha cumprido seu dever, e não abandonara seus irmãos numa hora difícil. Para isso, contara com o apoio do marido esloveno, dos filhos, e das pessoas que não eram manipuladas pelas máquinas de propaganda de ambos os lados.
Uma tarde, passou diante da estátua de Preseren, o grande poeta esloveno, e começou a pensar sobre sua vida. Aos 34 anos, ele entrara certa vez numa igreja e vira a uma moça adolescente, Julia Primic, pela qual ficara perdidamente apaixonado. Como os antigos menestréis, começou a lhe escrever poemas, na esperança de casar-se com ela.
Acontece que Julia era filha de uma família da alta burguesia, e – afora aquela visão fortuita dentro da igreja – Preseren nunca mais conseguiu chegar perto dela. Mas aquele encontro inspirou seus melhores versos, e criou a lenda em torno do seu nome. Na pequena praça central de Lubljana, a estátua do poeta mantém os olhos fixos em uma direção: quem seguir seu olhar, descobrirá – do outro lado da praça – um rosto de mulher esculpido na parede de uma das casas. Era ali que morava Julia; Preseren, mesmo depois de morto, contempla para a eternidade o seu amor impossível.
E se ele tivesse lutado mais?
O coração de Zedka disparou – talvez fosse o pressentimento de algo ruim, um acidente com seus filhos. Voltou correndo para casa: eles estavam assistindo televisão e comendo pipocas.
A tristeza, porém, não passou. Zedka deitou-se, dormiu quase 12 horas, e – quando acordou – não teve vontade de levantar-se. A história de Preseren trouxera de volta a imagem daquele seu primeiro amante, de cujo destino nunca mais tivera noticias.
E Zedka se perguntava: eu insisti o suficiente? Deveria ter aceito o papel da amante, ao invés de querer que as coisas andassem segundo minhas próprias expectativas? Lutei por meu primeiro amor com a mesma garra com que lutei por meu povo?
Zedka convenceu-se que sim, mas a tristeza não passava. O que antes lhe parecia o paraíso – a casa perto do rio, o marido
a quem amava, os filhos comendo pipoca diante da televisão – começou a transformar-se num inferno.
Hoje, depois de muitas viagens astrais e muitos encontros com espíritos desenvolvidos, Zedka sabia que tudo aquilo era bobagem. Usara o seu Amor Impossível como uma desculpa, um pretexto para romper os laços com a vida que levava, e que estava longe de ser aquilo que verdadeiramente esperava de si mesma.
Mas, doze meses atrás, a situação era outra: ela começou a procurar freneticamente o homem distante, gastara fortunas com chamadas internacionais, mas ele já não morava na mesma cidade, e foi impossível localiza-lo.. Mandou cartas por correio expresso, que acabavam sendo devolvidas. Ligou para todas as amigas e amigos que o conheciam, e ninguém tinha a menor idéia do que lhe acontecera.
Seu marido não sabia de nada, e isto a levava a loucura – porque ele devia pelo menos suspeitar de algo, fazer uma cena, queixar-se, ameaçar deixa-la no meio da rua. Passou a ter certeza de que as telefonistas internacionais, os correios, as amigas tinham sido subornadas por ele – que fingia indiferença. Vendeu as jóias que ganhara de casamento e comprou uma passagem para o outro lado do oceano, até que alguém a convenceu que as Américas eram muito grandes, e não adiantava ir sem ter certeza de onde chegar.
Certa tarde ela deitou-se, sofrendo por amor como nunca sofrera antes - nem mesmo quando tivera que voltar para o aborrecido cotidiano de Lubljana. Passou aquela noite, e todo o dia seguinte no quarto. E mais outro. No terceiro, seu marido chamou um médico – como era bondoso! Quanta preocupação por ela! Será que este homem não entendia que Zedka estava tentando me encontrar com outro, cometer adultério, trocar sua vida de mulher respeitada pela de uma simples amante escondida, deixar Lubljana, sua casa, seus filhos, para sempre?
O médico chegou, ela teve um ataque nervoso, fechou a porta com a chave – e só tornou a abri-la quando ele foi embora. Uma semana depois, não tinha vontade nem de ir no banheiro, e passou a fazer suas necessidades fisiológicas na cama. Já não pensava mais, a cabeça estava completamente tomada pelos fragmentos de memória do homem que – estava convencida – também a buscava sem conseguir encontra-la.
O marido – irritantemente generoso – trocava os lençóis, passava a mão na sua cabeça, dizia que tudo ia terminar bem. Os filhos não entravam no quarto desde que ela esbofeteara um deles sem nenhum motivo - e depois ajoelhara-se, beijara seus pés implorando desculpas, rasgando camisola em pedaços para mostrar seu desespero e arrependimento.
Depois de outra semana – onde cuspira a comida que lhe era oferecida, entrara e saíra desta realidade várias vezes, passara noites inteiras em claro e dias inteiros dormindo, dois
homens entraram no seu quarto sem bater . Um deles segurou-a, outro aplicou uma injeção, e ela acordara em Villete.
“Depressão”, ela escutara o médico dizer ao seu marido. “As vezes provocada pelos motivos mais banais. Falta um elemento químico, a serotonina, em seu organismo”.



Do teto da enfermaria, Zedka viu o enfermeiro chegar com uma seringa na mão. A garota continuava ali, parada, tentando conversar com seu corpo, desesperada com seu olhar vazio. Por alguns momentos, Zedka considerou a possibilidade de contar para ela tudo o que estava acontecendo, mas depois mudou de idéia; as pessoas nunca aprendem nada que lhes é contado, precisam descobrir por si mesmas.
O enfermeiro colocou a agulha no seu braço, e injetou glicose. Como se tivesse sido puxado por um enorme braço, seu espírito saiu do teto da enfermaria, passou em alta velocidade por um túnel negro, e retornou ao corpo.
- Olá, Veronika.
A menina tinha um ar apavorado.
- Você está bem?
- Estou. Felizmente consegui escapar deste perigoso tratamento, mas isso não irá se repetir mais.
- Como você sabe? Aqui, não respeitam ninguém.
Zedka sabia porque fora, em corpo astral, até o escritório do Dr. Igor.
- Eu sei, mas não tenho como explicar. Lembra-se da primeira pergunta que lhe fiz?
- “O que é a loucura?”
- Exatamente. Desta vez vou lhe responder sem fábulas: a loucura é a incapacidade de comunicar suas idéias. Como se você estivesse num país estrangeiro – vendo tudo, entendendo o que se passa a sua volta, mas incapaz de se explicar e de ser ajudada, porque não entende a língua que falam ali.
- Todos nós já sentimos isso.
- Todos nós, de um jeito ou de outro, somos loucos.
Do lado de fora da janela gradeada, o céu estava coberto de estrelas, com uma lua em quarto crescente subindo por detrás das montanhas. Os poetas gostavam da lua cheia, escreviam milhares de versos sobre ela, mas Veronika era apaixonada por aquela meia-lua, porque ainda havia espaço para aumentar, expandir-se, preencher de luz toda a sua superfície, antes da inevitável decadência.
Teve vontade de ir até o piano na sala de estar, e celebrar aquela noite com uma linda sonata que aprendera no colégio; olhando o céu, tinha uma indescritível sensação de bem-estar, como se o infinito do Universo mostrasse também sua própria eternidade. Mas estava separada de seu desejo por uma porta de aço, e uma mulher que nunca terminava de ler o seu livro. Além do mais, ninguém tocava piano àquela hora da noite – terminaria acordando a vizinhança inteira.
Veronika riu. A “vizinhança” eram as enfermarias repletas de loucos, estes loucos, por sua vez, repletos de remédios para dormir.
A sensação de bem-estar, entretanto, continuava. Levantou-se o foi até o leito de Zedka, mas ela estava dormindo profundamente, talvez para recuperar-se da horrível experiência pela qual passara.
- Volte para a cama – disse a enfermeira. – Meninas boas estão sonhando com os anjinhos ou os namorados.
- Não me trate como criança. Não sou uma louca mansa, que tem medo de tudo. Sou furiosa, tenho ataques histéricos, não respeito nem minha vida, nem a vida dos outros. Hoje, então, estou atacada. Olhei a lua, e quero conversar com alguém.
A enfermeira olhou-a, surpresa com a reação
- Você tem medo de mim? – insistiu Veronika. – Faltam um ou dois dias para a minha morte, o que tenho a perder?
- Por que você não vai dar uma passeio, mocinha, e me deixa terminar o livro?
- Porque existe uma prisão, e uma carcereira, que finge ler um livro, apenas para mostrar aos outros que é uma mulher inteligente. Na verdade, porém, ela está atenta a cada movimento dentro da enfermaria, e guarda as chaves da porta como se fosse um tesouro. O regulamento deve dizer isso, e ela obedece, porque assim pode mostrar a autoridade que não tem em sua vida diária, com seu marido e filhos.

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