Capitulo 5

sexta-feira, 16 de outubro de 2009



- Você está nervosa - disse a mulher. - Não sei se está arrependida, ou se ainda quer morrer, mas isso não me interessa. O que me interessa é cumprir com minha função: no caso do paciente mostrar-se agitado, o regulamento exige que eu lhe aplique um sedativo.
Veronika parou de debater-se, mas a enfermeira já lhe aplicava uma injeção no braço. Em pouco tempo estava de volta a um mundo estranho, sem sonhos, onde a única coisa que se lembrava era o rosto da mulher que acabara de ver: olhos verdes, cabelo moreno, e um ar totalmente distante – de quem faz as coisas porque tem que fazer, sem jamais perguntar por que o regulamento manda isso ou aquilo.




Veronika não sabe quanto tempo ficou dormindo. Lembrava-se de ter acordado algum momento – ainda com os aparelhos de sobrevivência em sua boca e em seu nariz – ouvindo uma voz que dizia:
“Você quer que eu a masturbe?”
Mas agora, com os olhos bem abertos e olhando o quarto ao seu redor, não sabia se aquilo tinha sido real, ou uma alucinação. Alem desta lembrança, não conseguia recordar nada, absolutamente nada.
Os tubos tinham sido retirados. Mas continuava com agulhas enfiadas por todo o corpo, fios conectados na área da coração e da cabeça, e os braços amarrados. Estava nua, coberta apenas por um lençol, e sentia frio – mas resolveu não reclamar. O pequeno ambiente, circundado por cortinas verdes, estava ocupado pelas máquinas da Unidade de Tratamento Intensivo, a cama onde estava deitada, e uma cadeira branca - com uma enfermeira sentada, entretida na leitura de um livro.
A mulher, desta vez, tinha olhos escuros e cabelos morenos. Mesmo assim, Veronika ficou em dúvida se era a mesma pessoa com quem conversara horas – dias? – antes.
- Pode desamarrar meus braços?
A enfermeira levantou os olhos, respondeu com um seco “não”, e voltou ao livro.
Estou viva, pensou Veronika. Vai começar tudo de novo. Devo passar algum tempo aqui dentro, até constatarem que sou perfeitamente normal. Depois me darão alta, e eu verei de novo as ruas de Lubljana, sua praça redonda, as pontes, as pessoas que passam pelas ruas indo e voltando do trabalho.
Como as pessoas sempre tendem a ajudar as outras – só para se sentirem melhores do que realmente são - eles me darão o emprego de volta na biblioteca. Com o tempo, voltarei a frequentar os mesmos bares e boates, conversarei com os meus amigos sobre as injustiças e problemas do mundo, irei ao cinema, passearei no lago.
Como escolhi os comprimidos, não estou deformada: continuo jovem, bonita, inteligente, e não terei – como nunca tive – dificuldades em arranjar namorados. Farei amor com eles em suas casas, ou no bosque, terei um certo prazer, mas logo depois do orgasmo a sensação do vazio voltará. Já não teremos muito o que conversar, e tanto ele como eu sabemos disso: chega a hora de dar
uma desculpa um para o outro – “está tarde”, ou “amanhã tenho que acordar cedo” - e partiremos o mais rápido possível, evitando nos olharmos nos olhos.
Eu volto para o meu quarto alugado no convento. Tento ler um livro, ligo a TV para ver os mesmos programas de sempre, coloco o despertador para acordar exatamente na mesma hora que acordei no dia anterior, repito mecanicamente as tarefas que me são confiadas na biblioteca. Como o sanduiche no jardim em frente ao teatro, sentada no mesmo banco, junto com outras pessoas que também escolhem os mesmos bancos para lanchar, que tem o mesmo olhar vazio, mas fingem estar preocupadas com coisas importantíssimas.
Depois volto ao trabalho, escuto alguns comentários sobre quem está saindo com quem, quem está sofrendo o que, como tal pessoa chorou por causa do marido - e fico com a sensação que sou privilegiada, sou bonita, tenho um emprego, arranjo o namorado que quiser. Aí volto aos bares no final do dia, e a coisa toda recomeça.
Minha mãe – que deverá estar preocupadíssima com minha tentativa de suicídio – vai se recuperar do susto e continuará me perguntando o que vou fazer de minha vida, porque não sou igual as outras pessoas, já que, afinal de contas, as coisas não são tão complicadas como eu penso que são. “Olhe para mim, por exemplo, que estou há anos casada com seu pai, e procurei lhe dar a melhor educação e os melhores exemplos possíveis.”
Um dia eu me canso de ouvi-la sempre repetindo a mesma conversa, e para agrada-la me caso com um homem a quem me obrigo a amar. Eu e ele terminaremos encontrando uma maneira de sonhar juntos com o nosso futuro, a casa de campo, os filhos, o futuro dos nosso filhos. Faremos muito amor no primeiro ano, menos no segundo, e a partir do terceiro ano a gente talvez pense em sexo uma vez a cada quinze dias, e transforme este pensamento em ação apenas uma vez por mês. Pior que isso, a gente quase não conversará. Eu me forçarei a aceitar a situação, e me perguntarei o que há de errado comigo – já que não consigo mais interessa-lo, ele não presta atenção a mim, e vive falando dos seus amigos como se fossem realmente o seu mundo.
Quando o casamento estiver realmente por um fio, eu ficarei grávida. Teremos o filho, passaremos algum tempo mais próximos um do outro, e logo a situação voltará a ser como antes.
Então começarei a engordar como a tia da enfermeira de ontem – ou de dias atrás, não sei bem. E começarei a fazer regime, sistematicamente derrotada a cada dia, a cada semana, pelo peso que insiste em aumentar apesar de todo o controle. A esta altura, eu tomarei estas drogas mágicas para não entrar em depressão – a terei alguns filhos, em noites de amor que passam depressa demais.
Direi a todos que os filhos são a razão de minha vida, mas na verdade eles exigem minha vida como razão.
As pessoas vão sempre nos considerar um casal feliz, e ninguém saberá o que existe de solidão, de amargura, de renúncia, atrás de toda aparência de felicidade.
Até que um dia, quando meu marido arranjar sua primeira amante, eu talvez faça um escândalo como a amiga da enfermeira, ou pense de novo em me suicidar. Mas aí estarei velha e covarde, com dois ou três filhos que precisam de minha ajuda, e preciso educa-los, coloca-los no mundo - antes de ser capaz de abandonar tudo. Eu não me suicidarei: farei um escândalo, ameaçarei sair com as crianças. Ele, como todo homem, recuará, dirá que me ama e que aquilo não vai mais se repetir. Nunca lhe passará pela cabeça que, se eu resolvesse mesmo ir embora, a única escolha seria voltar para casa dos meus pais, e ficar ali o resto da minha vida, tendo que escutar todo dia a minha mãe lamentar-se porque eu perdi uma oportunidade única de ser feliz, que ele era um ótimo marido apesar de seus pequenos defeitos, que meus filhos irão sofrer muito por causa da separação.
Dois ou três anos depois, outra mulher aparecerá em sua vida. Eu vou descobrir – porque vi, ou porque alguém me contou – mas desta vez finjo que não sei. Gastei toda a minha energia lutando contra a amante anterior, não sobrou nada, é melhor aceitar a vida como ela é na realidade, e não como eu imaginava que fosse. Minha mãe tinha razão.
Ele continuará sendo gentil comigo, eu continuarei o meu trabalho na biblioteca, os meus sanduíches na praça do teatro, os meus livros que nunca consigo terminar de ler, os programas de televisão que continuarão sendo os mesmos daqui a dez, vinte, cinquenta anos.
Só que comerei os sanduíches com culpa, porque estou engordando; e não irei mais a bares, porque tenho um marido que me espera em casa para cuidar dos filhos.
A partir daí, é esperar os meninos crescerem, e ficar todo dia pensando no suicídio, sem coragem de comete-lo. Um belo dia, chego a conclusão que a vida é assim, não adianta, nada mudará. E me conformo.
Veronika encerrou seu monologo interior, e fez uma promessa a si mesmo: não sairia de Villete com vida. Era melhor acabar com tudo agora, enquanto ainda tinha coragem e saúde para morrer.

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