quinta-feira, 10 de setembro de 2009



— Entendo — replicou ele — que uma criatura humana não canta como você cantou na outra noite sem que intervenha um milagre, sem que o Céu tenha a ver com isso. Não existe professor na face da terra que possa ensinar semelhantes inflexões. Você ouviu o Anjo da música, Christine.
— Sim, no meu camarim. É lá que ele vem me dar lições diárias. O tom com que disse isso era tão penetrante e tão singular que
Raoul olhou para ela preocupado, como se olha uma pessoa que diz uma enormidade ou afirma alguma visão enlouquecida em que acredita com todas as forças do seu pobre cérebro doente. Mas ela havia recuado e já não era mais, imóvel, do que uma sombra na noite.
— No seu camarim? — repetiu ele como um eco imbecil.
— Sim, foi lá que eu o ouvi, e não fui a única a ouvi-lo...
— Quem mais o ouviu, Christine?
— Você, meu amigo.
— Eu? Eu ouvi o Anjo da música?
— Sim, naquela noite, era ele quem estava falando enquanto você escutava atrás da porta do meu camarim. Foi ele quem me disse: “E preciso me amar”. Mas eu achava que era a única que podia perceber a voz dele. Assim, imagine o meu espanto quando soube, hoje de manhã, que você também podia ouvi-lo...
Raoul deu uma gargalhada. E imediatamente dissipou-se a noite sobre a landa deserta e os primeiros raios da lua vieram envolver os dois jovens. Christine tinha-se voltado, hostil, para Raoul. Os seus olhos, geralmente tão meigos, lançavam raios.
— Por que você está rindo? Você acha, talvez, que ouviu uma voz de homem?
— Nossa Senhora! — respondeu o rapaz, cujas idéias começavam a se atrapalhar diante da atitude de combate de Christine.
— E você, Raoul! você quem me diz isso! Um antigo companheirinho meu! um amigo do meu pai! Não estou reconhecendo você. Mas o que é que você está pensando? Eu sou uma moça honesta, senhor visconde de Chagny, e não me tranco com vozes de homem no meu camarim. Se você tivesse aberto a porta, teria visto que não tinha ninguém lá!
— É verdade! Quando você saiu, eu abri a porta e não encontrei ninguém no camarim...
— Você está vendo... então?
O visconde fez apelo à sua coragem.
— Então, Christine, eu acho que estão zombando de você! Ela deu um grito e fugiu. Ele correu atrás, mas ela, numa irritação feroz, lhe lançou as seguintes palavras:
— Me deixe! me deixe!
E desapareceu. Raoul voltou à hospedaria muito cansado, desanimado e triste.
Soube que Christine acabara de subir para o seu quarto e avisara que não desceria para jantar. O rapaz perguntou se ela não estava doente. A boa hospedeira respondeu-lhe de maneira ambígua que, se estava sofrendo, devia ser de um mal não muito grave e, como ela achava que os dois enamorados estavam zangados, afastou-se erguendo os ombros e exprimindo sorrateiramente o dó que tinha de jovens que desperdiçam em vãs disputas as horas que Deus lhes permitiu passar sobre a terra. Raoul jantou sozinho, no canto perto da lareira, e, como vocês podem imaginar, de maneira bastante aborrecida. Já no quarto, tentou ler, depois, na cama, tentou dormir. Não se ouvia ruído algum no apartamento ao lado. Que estaria fazendo Christine? Estaria dormindo? E, se não, em que estaria pensando? E ele estava pensando em quê? Teria sido capaz de dizer? A conversa estranha que tivera com Christine o tinha perturbado completamente!... Pensava menos em Christine do que em torno de Christine, e esse “em torno” era tão difuso, tão nebuloso, tão impalpável que lhe causava um mal-estar curiosíssimo e muito angustiante.
Assim, as horas passavam muito lentas; podiam ser onze e meia da noite quando ouviu distintamente alguém andar no quarto vizinho. Era um passo ligeiro, furtivo. Christine não se tinha deitado então? Sem arrazoar o seu gesto, o rapaz se vestiu às pressas, cuidando para não fazer nenhum barulho. E, pronto para tudo, ficou esperando. Pronto para quê? Será que ele sabia? O seu coração deu um salto quando ouviu a porta de Christine girar lentamente sobre os gonzos. Aonde iria ela àquela hora em que tudo descansava em Perros? Entreabriu levemente a sua porta e pôde ver, num raio de luar, a forma branca de Christine que deslizava com precaução pelo corredor. Atingiu a escada, desceu, e ele, acima dela, debruçou-se sobre a rampa. Súbito, ouviu duas vozes que conversavam rapidamente. Uma frase lhe chegou: “Não perca a chave”. Era a voz da hospedeira. Embaixo, abriram a porta que dava para a enseada. Fecharam-na. A forma branca de Christine erguia-se sobre o cais deserto.
Aquele primeiro andar da Hospedaria do Sol-Poente não era alto e uma árvore que esparramava os galhos até os braços impacientes de Raoul permitiu que este saísse sem que a hospedeira desconfiasse de sua ausência. Assim, qual não foi a estupefação da boa senhora, na manhã do dia seguinte, quando lhe trouxeram o rapaz quase congelado, mais morto do que vivo, e lhe contaram que o tinham encontrado estendido nos degraus do altar-mor da igrejinha de Perros. Correu para dar imediatamente a notícia a Christine, que desceu às pressas e prodigalizou, ajudada pela hospedeira, os seus cuidados preocupados ao rapaz, que não tardou em abrir os olhos e voltou completamente à vida ao perceber, acima de si, o rosto encantador da amiga.
O que havia acontecido? O delegado Mifroid teve a oportunidade, algumas semanas mais tarde, quando o drama da Ópera provocou a intervenção do ministério público, de interrogar o visconde de Chagny sobre os acontecimentos da noite de Perros, e eis de que modo estes foram transcritos nas folhas do relatório de inquérito. (Cota 150).
Pergunta: — A Srta. Daaé não tinha visto o senhor descer do seu quarto pelo singular caminho que escolheu?
Resposta: — Não, senhor, não, não. Entretanto, cheguei por trás dela sem cuidar de abafar o ruído dos meus passos. Naquele momento eu só queria uma coisa: que ela se virasse e me visse, e que me reconhecesse. Acabava de dizer a mim mesmo, de fato, que a minha perseguição era totalmente incorreta e que o tipo de espionagem a que me entregava não era digno de mim. Mas ela não pareceu me ouvir e, realmente, agiu como se eu não estivesse ali. Deixou tranqüilamente o cais e então, de repente, subiu depressa o caminho. O relógio da igreja acabara de bater um quarto para meia-noite, e pareceu-me que o som da hora determinou a pressa da sua corrida, pois ela começou quase a correr. Assim, ela chegou à porta do cemitério.
P: — A porta do cemitério estava aberta?
R: — Estava, sim, senhor, e isso me surpreendeu, mas parece não ter causado espanto à Srta. Daaé.
P: — Não havia ninguém no cemitério?

0 comentários:

;

Gente que faz o OIFTV:

Felipe Silva -Administrador geral do Blog

Rafael Zimbrão - Autor de Webs series e Webs novelas

Paulo Victor Alexandre - Colunista