quarta-feira, 16 de setembro de 2009


O MISTERIOSO CUPÊ




Essa noitada trágica foi má para toda gente. Carlotta caiu doente. Quanto a Christine Daaé, desapareceu depois da representação. Quinze dias se passaram sem que a vissem no teatro, sem que se mostrasse fora do teatro.
Não há que se confundir este primeiro desaparecimento, que se deu sem escândalo, com o famoso rapto que, algum tempo depois, devia acontecer em condições tão inexplicáveis e tão trágicas.
Raoul foi, naturalmente, o primeiro a não entender nada da ausência da diva. E lhe havia escrito no endereço da Sra. Valérius e não tinha obtido resposta. De início, não ficara particularmente admirado, conhecendo o seu estado de espírito e a resolução em que ela estava de romper qualquer relação entre eles, sem que ele, aliás, tivesse podido adivinhar a razão disso.
O que só fez aumentar a sua dor, e acabou ficando preocupado por não ver a cantora em nenhum programa. Levaram Fausto sem ela. Uma tarde, ali pelas 5 horas, foi informar-se junto à direção sobre as causas do desaparecimento de Christine Daaé. Encontrou os diretores muito preocupados. Os próprios amigos deles não os reconheciam mais; tinham perdido toda alegria e todo entusiasmo. Eram vistos atravessando o teatro cabisbaixos, fronte preocupada, rostos pálidos como se estivessem sendo perseguidos por algum pensamento abominável, ou sendo vítimas de alguma maldade do destino que agarra o seu homem e não o larga mais.
A queda do lustre tinha acarretado muitas responsabilidades, mas era difícil fazer com que os diretores se explicassem a esse respeito.
A diligência concluiu por acidente advindo em conseqüência do desgaste dos meios de sustentação, mas assim mesmo teria sido dever dos antigos diretores, assim como dos novos, verificar esse desgaste e tomar providências antes que este provocasse a catástrofe.
E preciso dizer que os Srs. Richard e Moncharmin mostraram-se nessa época tão mudados, tão distantes... tão misteriosos... tão incompreensíveis que muitos assinantes puseram-se a imaginar que algum acontecimento mais medonho ainda do que a queda do lustre tinha modificado o estado de alma dos diretores.
Em suas relações cotidianas, mostravam-se por demais impacientes, exceto, entretanto, com a Sra. Giry, que fora reintegrada em suas funções. Dá para desconfiar qual foi a maneira com que receberam o visconde de Chagny quando este veio pedir notícias de Christine. Limitaram-se a responder que ela estava de licença. Ele perguntou quanto tempo duraria essa licença; foi-lhe respondido secamente que era ilimitada, pois Christine Daaé a pedira por motivo de saúde.
— Então ela está doente! — exclamou. — O que é que ela tem?
— Nós não sabemos!
— Os senhores não lhe mandaram o médico do teatro?
— Não! Ela não pediu e, como confiamos nela, acreditamos em sua palavra.
O caso não pareceu natural para Raoul, que deixou o teatro às voltas com os mais sombrios pensamentos. Resolveu, acontecesse o que acontecesse, ir atrás de notícias na casa da Sra. Valérius. Por certo se lembrava dos termos enérgicos da carta de Christine, que lhe proibia tentar o que quer que fosse para se encontrar com ela. Mas o que tinha visto em Perros, o que tinha ouvido atrás da porta do camarim, a conversa que tinha tido com Christine à beira da landa, lhe faziam pressentir alguma maquinação que, por ser um pouco diabólica, nem por isso era menos humana. A imaginação exaltada da moça, a sua alma terna e crédula, a educação primitiva que cercara os seus jovens anos com um círculo de lendas, o contínuo pensamento do pai morto e principalmente o estado de sublime êxtase em que a música a mergulhava logo que essa arte se manifestava a ela em certas condições excepcionais — não tinha ele estado em condição de presenciar o fato por ocasião da cena do cemitério? —, tudo isso lhe aparecia como devendo constituir um terreno moral propício para as iniciativas malfazejas de alguma personagem misteriosa e sem escrúpulos. De quem Christine Daaé estava sendo vítima? Eis a questão muito sensata que Raoul levantava para si mesmo enquanto ia, às pressas, para a casa da Sra. Valérius.
O visconde tinha, com efeito, uma mente das mais sadias. Sem dúvida era poeta e gostava de música no que ela tem de mais alado, era grande aficionado dos contos bretães em que dançam os “korrigans”, e, além de tudo, estava enamorado dessa fadinha do norte que era Christine Daaé; isso não impedia que ele só acreditasse no sobrenatural em matéria de religião e que a história mais fantástica do mundo não seria capaz de fazê-lo esquecer que dois e dois são quatro.
O que é que ele ia ficar sabendo na casa da Sra. Valérius? Tremia de medo ao tocar a campainha da porta de um pequeno apartamento da rua Notre-Dame-des-Victoires.
A camareira que, uma noite, tinha saído diante dele do camarim de Christine veio abrir-lhe. Ele perguntou se podia ver a Sra. Valérius. Foi-lhe respondido que ela estava adoentada, de cama, e impossibilitada de “receber”.
— Faça chegar a ela o meu cartão — pediu ele.
Não esperou por muito tempo. A camareira voltou e fê-lo entrar numa pequena sala de visitas bastante escura e sumariamente mobiliada onde os dois retratos, um do professor Valérius e outro do Sr. Daaé, estavam colocados frente a frente.
— Minha senhora se desculpa junto ao senhor visconde — disse a doméstica. — Ela só poderá recebê-lo no seu quarto, pois as pobres pernas já não a podem sustentar.
Cinco minutos depois Raoul era introduzido num quarto quase escuro, onde distinguiu imediatamente, na penumbra de uma alcova, a bondosa figura da benfeitora de Christine. Agora os cabelos da Sra. Valérius estavam totalmente brancos, mas os olhos não tinham envelhecido: jamais, pelo contrário, o seu olhar havia sido tão claro, nem tão puro, nem tão infantil.
— Sr. De Chagny! — disse ela alegremente estendendo as duas mãos ao visitante... — Ah! é o Céu que me envia o senhor!... Vamos poder falar dela.
Esta última frase soou bastante lúgubre aos ouvidos do jovem. Perguntou de imediato:
— Minha senhora, onde está Christine?
A velha senhora respondeu-lhe com tranqüilidade:
— Ora, ela está com o seu “bom gênio”!
— Que bom gênio? — perguntou o pobre Raoul.
— Ora, o Anjo da musica!
O visconde de Chagny, consternado, sentou-se pesadamente numa cadeira. Realmente, Christine estava com o Anjo da música! E a Sra. Valérius, em seu leito, lhe sorria colocando um dedo na boca para lhe recomendar silêncio. Ela acrescentou:
— Isso não deve ser dito a ninguém!
— A senhora pode confiar em mim! — replicou Raoul sem saber bem o que dizia, pois as suas idéias sobre Christine, já bastante confusas, se embaralhavam cada vez mais, e parecia que tudo começava a girar em seu redor, ao redor do quarto, ao redor dessa extraordinária boa senhora de cabelos brancos, de olhos de céu azul pálido, de olhos de céu vazio... — A senhora pode confiar em mim...
— Eu sei! eu sei! — afirmou ela com um sorriso feliz. — Mas aproxime-se então de mim, como quando o senhor era pequenino. Dê-me as suas mãos como quando me relatava a história da pequena Lotte que lhe tinha sido contada pelo Sr. Daaé. Eu gosto muito do senhor, sabe, Sr. Raoul. E Christine também gosta muito!
— ... Ela gosta muito de mim... — suspirou o jovem que juntava com dificuldade o seu pensamento em torno do gênio da Sra. Valérius, em torno do Anjo de que tão estranhamente lhe falara Christine, da cabeça de caveira que ele tinha vislumbrado numa espécie de pesadelo nos degraus do altar-mor de Perros e também do fantasma da Ópera, cuja reputação lhe tinha chegado aos ouvidos, numa noite em que se tinha atrasado no palco, a dois passos de um grupo de maquinistas que lembravam a descrição que dele fizera antes de seu misterioso fim o enforcado Joseph Buquet...
Perguntou em voz baixa:
— O que é que a leva a Crer, minha senhora, que Christine gosta de mim?
— Ela me falava do senhor todos os dias!
— Mesmo? ... E o que é que ela lhe dizia?
— Ela me disse que o senhor lhe fez uma declaração!...
E a boa velhinha se pôs a rir às gargalhadas, mostrando todos os dentes, que tinha zelosamente conservado. Raoul levantou-se, com a fronte avermelhada, sofrendo atrozmente.
— E então, aonde o senhor vai?... O senhor não quer se sentar?... O senhor vai me deixar assim?... O senhor se zangou porque eu ri, eu lhe peço perdão... Afinal, não é culpa sua, o que aconteceu... O senhor não sabia... O senhor é jovem... e acreditava que Christine estava livre...
— Christine está noiva? — perguntou com voz estrangulada o infeliz Raoul.
— Não! não mesmo!... O senhor sabe bem que Christine, ainda que quisesse, não pode se casar!...
— O quê? Mas eu não sabia de nada!... E por que Christine não pode se casar?
— Por causa do gênio da música, ora!...
— Outra vez...
— Sim, ele lhe proíbe!...
— Ele lhe proíbe!... O gênio da música lhe proíbe de se casar!...
Raoul se debruçava sobre a Sra. Valérius, com o maxilar avançado, como para mordê-la. Se tivesse vontade de devorá-la, não a olharia com olhos mais ferozes. Há momentos em que a inocência de espírito exagerada aparece tão monstruosa que se torna digna de ódio. Raoul achava a Sra. Valérius por demais inocente.
Ela não se deu conta do olhar horrível que pesava sobre ela. Retomou a conversa da maneira mais natural:
— Oh! ele lhe proíbe... sem lhe proibir... Ele lhe diz simplesmente que, se ela se casar, não ouvirá mais a sua voz! Isso é tudo!... e que ele irá embora para sempre!... Então, o senhor compreende, ela não quer deixar que vá embora o gênio da música. E muito natural.
— Sim, sim — obtemperou Raoul num sopro —, é muito natural.
— Aliás, eu pensava que Christine lhe tivesse dito tudo isso, quando se encontrou com o senhor em Perros sobre o túmulo de Daaé! Ele lhe tinha prometido que tocaria A ressurreição de Lázaro com o violino do pai dela!
Raoul de Chagny levantou-se e pronunciou estas palavras decisivas com grande autoridade:
— Minha senhora, a senhora vai me dizer onde mora esse gênio! A velha senhora não pareceu particularmente surpresa com essa pergunta indiscreta. Levantou os olhos e respondeu:
— No céu!
Tanta candura o desarmou. Uma fé tão simples e perfeita num gênio que, todas as noites, desce do céu para freqüentar os camarins de artistas na Ópera deixou-o estupefato.
Dava-se conta agora do estado de espírito em que podia se encontrar uma mocinha criada entre um menestrel supersticioso e uma boa senhora “iluminada”; estremeceu ao pensar nas conseqüências de tudo isso.
— Christine continua sendo uma moça honesta? — não pôde deixar de perguntar de repente.
— Pelo meu lugar no paraíso, eu juro! — exclamou a velha, que desta vez pareceu irritada. — E, se o senhor duvida disso, não sei o que veio fazer aqui!...

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