terça-feira, 15 de setembro de 2009

Um trovão de aplausos... É Carlotta que entra em cena.

O ato do jardim se desenrolava com as suas peripécias costumeiras.

Quando Margarida acabou de cantar a ária do Rei de Tule, foi aclamada; foi de novo aclamada quando terminou a ária das jóias:

Ah! rio ao ver-me assim Tão bela neste espelho...

Daí por diante, segura de si, segura de seus amigos na sala, segura de sua voz e de seu sucesso, nada mais temendo, Carlotta se deu inteira, com ardor, com entusiasmo, com embriaguez. O seu jogo não teve mais nenhum recato nem pudor... Já não era mais Margarida, era Carmem. Aplaudiram-na ainda mais, e seu dueto com Fausto parecia preparar-lhe um novo sucesso quando sobreveio de repente... algo de apavorante.

Fausto se ajoelhara:

Deixa-me contemplar, deixa-me, teu semblante Sob a luz fugidia

Com que o astro da noite, em nuvem tão distante, Tua graça acaricia.

E Margarida respondia:

Ó silêncio! Ó ventura! inefável mistério! Langor inebriante!

Escuto!... E entendo que essa voz solitária Em meu coração cante.

Nesse momento pois... nesse momento exato... aconteceu alguma coisa... eu disse alguma coisa de apavorante...

...A sala, num só movimento, se levantou... Em seu camarote, os diretores não conseguem reter uma exclamação de horror... Espectadores e espectadoras se olham como para se perguntar uns aos outros a explicação de tão inesperado fenômeno... O rosto de Carlotta exprime a dor mais atroz, seus olhos parecem habitados pela loucura. A pobre mulher se levanta, com a boca ainda aberta, tendo terminado de cantar o verso “em meu coração cante”. Mas daquela boca não sai mais nenhum som... mais nenhuma palavra...

Porque aquela boca, criada para a harmonia, aquele instrumento ágil que nunca havia falhado, órgão magnífico, gerador das mais belas sonoridades, dos mais difíceis acordes, das mais exigentes modulações, dos ritmos mais ardentes, sublime mecânica humana a que não faltava, para ser divina, senão o fogo do céu que, só ele, dá a verdadeira emoção que eleva as almas... aquela boca tinha deixado passar...

Daquela boca havia escapado...

...Um sapo! Um medonho, asqueroso, peçonhento, viscoso, chiante sapo!...

Por onde teria ele entrado? Como se tinha acocorado sobre a língua de Carlotta? Com as patas de trás encolhidas, para saltar mais alto e mais longe, soturnamente, havia saído da boca da cantora e...

Pois vocês imaginam que só se deve falar de sapo no sentido figurado. A gente não o via mas, pelos diabos!, a gente o ouvia coaxando!

Nunca batráquio algum, à beira dos brejos ressoantes, havia rasgado a noite com mais medonho coaxar.

E por certo ele se fazia ouvir por toda gente. Carlotta não acreditava ainda nem na sua garganta nem nos seus ouvidos. Um raio, se caísse aos seus pés, não a teria espantado mais do que aquele sapo coaxando que acabava de sair da sua boca...

E ela não o teria desonrado. Ao passo que é bem sabido que um sapo encolhido sobre a língua desonra sempre uma cantora. Algumas morreram por causa disso.

Meu Deus! Quem teria acreditado numa coisa dessas?... Ela estava cantando tão tranqüilamente: “E entendo que essa voz solitária em meu coração cante!” Cantava sem esforço, como sempre, com a mesma facilidade com que vocês dizem: “Bom dia, minha senhora, como está?”

Não se pode negar que existem cantoras presunçosas, que cometem o grande erro de não medir as suas forças, e que, em seu orgulho, querem atingir, com a fraca voz com que o Céu as brindou, efeitos excepcionais e emitir notas que lhes foram proibidas ao virem ao mundo. E então que o Céu, para as punir, lhes envia, sem que saibam, um sapo na boca, um sapo que coaxa! Todo mundo sabe disso. Mas ninguém podia admitir que uma Carlotta, que tinha pelo menos duas oitavas em sua voz, tivesse também um sapo.

Ninguém podia ter-se esquecido de seus contrafás estridentes, de seus stacati inauditos em A flauta encantada. Todos se lembravam de seu Don Juan, em que ela era Elvira e em que arrebatou o mais estrondoso triunfo, certa noite, emitindo ela própria o si bemol que sua colega Dona Anna não conseguia alcançar. Então, realmente, que significava esse coaxar, na ponta dessa tranqüila, sossegada, pequenina “voz solitária que cantava em seu coração”?

Não era natural. Havia aí algum sortilégio. Esse sapo estava com cheiro de queimado. Pobre, miserável, desesperada, aniquilada Carlotta!...

Na sala, o rumor crescia. Fosse outra que não Carlotta a quem acontecesse semelhante aventura, tê-la-iam vaiado! Mas com ela, de quem se conhecia o perfeito instrumento, ninguém mostrava raiva, mas consternação e pavor. Assim os homens tiveram de suportar essa espécie de espanto se houve algum que assistiu à catástrofe que quebrou os braços da Vênus de Milo!... e ainda puderam ver o golpe que feria... e compreender...

Mas naquele caso? O sapo era incompreensível!...

Tanto assim que depois de passados alguns segundos a se perguntar se ela havia realmente ouvido sair de sua própria boca aquela nota — seria uma nota, um som? — poderia chamar-se aquilo um som? Um som é ainda música — aquele barulho infernal, ela quis se persuadir de que nada tinha sido; que tinha havido ali, por um instante, uma ilusão de seu ouvido, e não uma criminosa traição do órgão vocal.

Lançou, desvairada, olhares em torno de si como para procurar refúgio, proteção, ou melhor, a segurança espontânea da inocência de sua voz. Levara os dedos crispados à garganta num gesto de defesa e protesto! Não! aquele coaxo não era dela! E parece mesmo que o próprio Carolus Fonta era dessa opinião, pois olhava para ela com uma expressão inenarrável de estupefação infantil e gigantesca. Porque, afinal, ele estava perto dela. Não a havia deixado. Talvez ele pudesse dizer-lhe como tinha acontecido semelhante coisa! Não, ele não podia! Os seus olhos estavam estupidamente pregados na boca de Carlotta como os olhos das crianças contemplando o chapéu inesgotável do prestidigitador. Como uma boca tão pequena podia ter contido um tão grande coaxo?

Tudo isso, sapo, coaxo, emoção, terror, rumor da sala, confusão do palco, dos bastidores — alguns comparsas exibiam caras espantadas —, tudo isso que lhes descrevo com pormenores durou apenas alguns segundos.

Alguns segundos horríveis que pareceram principalmente intermináveis aos olhos dos dois diretores lá em cima, no camarote nº 5. Moncharmin e Richard estavam muito pálidos. Esse episódio inaudito e que permanecia inexplicável os enchia de uma angústia que ficava ainda mais misteriosa na medida em que estavam havia alguns instantes sob a influência direta do fantasma.

Tinham sentido o seu sopro. Alguns cabelos de Moncharmin se tinham levantado sob esse sopro... E Richard tinha passado o lenço na testa banhada em suor... Sim, ele estava lá... em torno deles... atrás deles, ao lado deles, eles o sentiam sem o ver!... Ouviam a sua respiração... e tão perto deles, tão perto deles!... A gente sabe quando alguém está presente... Pois bem, eles sabiam agora!... Estavam certos de que eram três no camarote... Estavam tremendo... Tinham vontade de fugir... Não ousavam... Não ousavam fazer nenhum movimento, trocar uma palavra que pudesse deixar o fantasma perceber que eles sabiam que ele estava ali!... O que ia acontecer? O que iria se produzir?

Acima de todos os barulhos da sala ouviu-se a exclamação de horror dos dois. Eles se sentiam sob os golpes do fantasma. Debruçados acima do camarote, olhavam para Carlotta como se não a reconhecessem. Aquela moça infernal devia ter dado, com o seu coaxo, o sinal de alguma catástrofe! Ah! a catástrofe, eles a esperavam! O fantasma lhes havia prometido! A sala maldita! O seu duplo peito diretorial arfava já sob o peso da catástrofe. Ouviu-se a voz sufocada de Richard que gritava para Carlotta:

— Pois bem! continue!

Não, Carlotta não continuou... Ela recomeçou bravamente, heroicamente, o verso fatal ao fim do qual tinha aparecido o sapo.

Um silêncio assustador sucede a todos os ruídos. Só a voz de Carlotta enche de novo o vaso sonoro.

Escuto!... A sala toda escuta:

Escuto!... E entendo que essa voz solitária (coaxo!) Coaxo!... Em meu... coaxo... cante... coaxo...

O sapo também recomeçou.

A sala explode num prodigioso tumulto. Caídos em suas poltronas, os diretores nem arriscam voltar a cabeça; não têm forças para isso. O fantasma lhes ri no pescoço! E finalmente eles ouvem distintamente no ouvido direito a sua voz, a impossível voz, a voz sem boca, a voz que diz:

“Esta noite ela está cantando de arrancar o lustre!”

Num movimento conjunto, levantaram a cabeça para o teto e soltaram um grito terrível. O lustre, a imensa massa do lustre deslizava, vinha a eles, ao apelo dessa voz satânica. Despregado, o lustre mergulhava das alturas da sala e se despencava no meio da platéia, em meio a mil clamores. Foi um espanto, um salve-se-quem-puder generalizado. Minha intenção não é reviver aqui um momento histórico. Aos curiosos, basta abrir os jornais da época. Houve numerosos feridos e uma morta.

O lustre tinha-se arrebentado em cima da cabeça da infeliz que tinha vindo aquela noite à Ópera pela primeira vez na vida, em cima daquela que o Sr. Richard havia designado para substituir nas funções de lanterninha a Sra. Giry, a lanterninha do fantasma. Ela morreu instantaneamente e, no dia seguinte, um jornal saía com esta manchete: Duzentos mil quilos sobre a cabeça de uma zeladora!

Esse foi todo o seu panegírico.

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