quarta-feira, 30 de setembro de 2009

COMEÇAM OS SUPLÍCIOS



A voz repetiu com furor:
— O que é que você fez da minha bolsa?
Christine Daaé não devia estar tremendo mais do que nós.
— Era para pegar a minha bolsa que você queria que eu a soltasse, diga?...
Ouviram-se passos precipitados, a corrida de Christine que voltava para o quarto Louis Philippe, como para buscar abrigo diante da nossa parede.
— Por que você está fugindo? — Dizia a voz enraivecida que a seguia... — Você quer me devolver a minha bolsa!? Você não sabe que é a bolsa da vida e da morte?
— Ouça-me, Erik, visto que doravante ficou combinado que devemos viver juntos... o que é que o preocupa?... Tudo o que é seu me pertence!...
Isso foi dito de maneira tão trêmula que dava dó. A coitada devia estar usando tudo que lhe restava de energia para vencer o seu terror... Mas não era com protestos tão infantis, ditos a bater os dentes, que se podia surpreender o monstro.
— Você sabe que aí dentro só estão duas chaves... O que é que você quer fazer? — perguntou.
— Eu queria visitar aquele quarto que eu não conheço e que você sempre me escondeu... E uma curiosidade de mulher! — acrescentou num tom que queria mostrar-se sedutor, mas só conseguiu aumentar a desconfiança de Erik de tanto que soava falso...
— Não gosto de mulheres curiosas! — replicou Erik —, e você deveria se precaver desde a história do Barba-Azul... Vamos! devolva a minha bolsa!... devolva a minha bolsa!... Pequena curiosa!
E ele deu uma risada enquanto Christine soltava um grito de dor... Erik acabara de retomar a bolsa.
Foi nesse momento que o visconde, perdendo o controle, lançou um grito de raiva e de impotência, que tive grande dificuldade para reter em seus lábios...
— Ora essa! — disse o monstro. — O que é isso?... Você não ouviu, Christine?
— Não! não! — respondeu a infeliz —, não ouvi nada!
— Parece-me que deram um grito!
— Um grito!.. Você está ficando louco, Erik?... Quem você acha que iria gritar no fundo desta morada?... Fui eu que gritei porque você estava me machucando!... Eu não ouvi nada!...
— Enquanto você está dizendo isso, você está tremendo!... Você está bastante perturbada!... Você está mentindo!... Alguém gritou! alguém gritou! Há alguém no quarto dos suplícios!... Ah! estou entendendo agora!...
— Não tem ninguém, Erik!...
— Estou entendendo!...
— Ninguém!...
— O seu noivo... talvez!...
— Eu não tenho noivo!... Você sabe muito bem!... Mais uma risada sardônica.
— Aliás, é tão fácil saber... Minha queridinha, meu amor... não é preciso abrir a porta para ver o que se passa no quarto dos suplícios... Basta puxar a cortina preta e apagar as luzes aqui... Pronto, está feito... Vamos apagar! Você não tem medo da noite, na companhia do seu maridinho!...
Então se ouviu a voz agonizante de Christine.
— Não!... Eu tenho medo!... Eu lhe digo que morro de medo na noite!... Aquele quarto não me interessa mais!... E você que me deixa com medo o tempo todo, como a uma criança, com esse quarto dos suplícios!... Então fiquei curiosa, é verdade!... Mas ele não me interessa mais, absolutamente... absolutamente!...
E aquilo que eu temia mais do que tudo começou automaticamente... Fomos, de repente, inundados de luz!... Sim, atrás da nossa parede, foi como um abrasamento. O visconde de Chagny, que não esperava por aquilo, ficou tão surpreso que cambaleou. E a voz de cólera estrondeou ao lado.
— Eu lhe disse que tinha alguém!... Você está vendo, agora a janela?... a janela luminosa!... Bem lá no alto!... Quem está atrás da parede não a vê!... Mas você vai subir na escadinha. Ela está aí para isso!... Você me perguntou muitas vezes para que ela servia... Pois bem, você agora está sabendo!... Serve para se olhar pela janela do quarto dos suplícios... pequena curiosa!...
— Que suplícios?... que suplícios existem lá dentro?... Erik! Erik! diga-me que você quer meter-me medo!...Diga-me isso, se você me ama, Erik!... Não é verdade que não há suplícios? São histórias para crianças!...
— Vá ver, minha querida, na janelinha!...
Não sei se o visconde, ao meu lado, ouvia agora a voz abatida da jovem mulher, de tal modo estava ocupado com o espetáculo inaudito que acabara de surgir diante dos seus olhos perdidos... Quanto a mim, que já tinha visto esse espetáculo muitas vezes, pela janelinha das horas cor-de-rosa de Mazenderã, estava atento ao que se dizia ao lado, buscando uma razão para agir, uma resolução a tomar.
— Vá olhar, vá olhar na janelinha!... Você me dirá!... Você me dirá depois como é feito o nariz dele!
Ouvimos rolar a escada que foi encostada à parede...
— Suba então!... Não!... Não, eu vou subir... eu, minha querida!...
— Pois bem, deixe... eu vou ver... deixe-me!
— Ah! minha queridinha!... Minha queridinha!... como você é engraçadinha... E muito gentil da sua parte poupar-me desse trabalho, na minha idade!... Você me dirá como é feito o nariz dele!... Se as pessoas tivessem idéia da felicidade que há em se ter um nariz... um nariz bem da gente... nunca viriam passear no quarto dos suplícios!...
Nesse instante, ouvimos distintamente, acima de nossas cabeças, estas palavras:
— Meu amigo, não há ninguém!...
— Ninguém?... Você está certa de que não há ninguém?...
— Palavra, não... não há ninguém...
— Ora, tanto melhor!... O que é que você tem, Christine?...
Ora, quê! Você não vai se sentir mal!... Já que não há ninguém!... Lá!... desça!... Aí!... Recupere-se, já que não há ninguém... Mas o que você acha da paisagem?...
— Oh! muito bonita!...
— Vamos! agora está melhor!... Não é, está melhor!... Tanto melhor!... Sem emoção!... E que casa esquisita, não é, onde se podem ver semelhantes paisagens?...
— Sim, parece que se está no Museu Grévin!... Mas diga, Erik... não há suplícios lá dentro!... Sabe que você me pôs um medo!...
— Por quê, já que não há ninguém!...
— Foi você quem fez aquele quarto, Erik?... Sabe que é muito bonito! Realmente, você é um grande artista, Erik...
— Sim, um grande artista “no meu gênero”.
— Mas diga-me, Erik, por que você chama de quarto dos suplícios?...
— E bem simples. Primeiro, o que foi que você viu?
— Vi uma floresta!...
— E o que há na floresta?
— Árvores!...
— E o que há numa árvore?
— Passarinhos...
— Você viu passarinhos...
— Não, não vi passarinhos.
— Então, o que foi que você viu? Procure!... Você viu galhos! E o que há num galho? — pergunta a voz terrível. — Há uma forca! Aí está por que chamo a minha floresta de quarto dos suplícios!... Está vendo, não passa de um modo de falar! Tudo isso é de brincadeira!... Eu nunca me exprimo como os outros!... Não faço nada como os outros!... Mas já estou cansado de tudo isso!... bem cansado!... Estou farto, está vendo, de ter uma floresta na minha casa e um quarto dos suplícios!... E de ficar alojado, como um charlatão, no fundo de uma caixa de fundo duplo!... Estou farto!... estou farto!... Quero ter um apartamento tranqüilo, com portas e janelas comuns e uma mulher honesta dentro, como toda a gente!... Você deveria entender isso, Christine, e eu não devia precisar repetir-lhe isso a toda hora!... Uma mulher como toda gente tem!...
Uma mulher que eu amaria, que levaria para passear aos domingos, e que eu faria rir a semana toda! Ah! Você não ia se aborrecer comigo! Eu tenho mais de um truque na manga, sem contar os truques de baralho!... Escute! Quer que eu lhe mostre um truque de baralho? Sempre vai servir para passarmos alguns minutos, enquanto esperamos chegar amanhã à noite, 11 horas!... Minha pequena Christine!... Minha pequena Christine!... Você está me escutando?... Você vão me rejeita mais!... diga? Você me ama!... Não, você não me ama!... Mas não faz mal! Você me amará! Antigamente você não podia olhar para a minha máscara porque não sabia o que estava atrás... E agora você pode olhar e você esquece o que está atrás, e você aceita não me rejeitar mais!... A gente se acostuma com tudo, quando quer... quando se tem boa vontade!... quantos jovens que não se amavam antes do casamento passaram a se adorar depois! Ah! não sei mais o que estou dizendo... Mas você vai se divertir muito comigo!... Não existe um como eu, por exemplo, isso eu lhe juro diante do bom Deus que vai nos casar — se você for razoável —, não há ninguém como eu para fazer o truque do ventríloquo! Sou o primeiro ventríloquo do mundo! Você está rindo?... Você não acredita em mim!... Escute!
O miserável (que era de fato o primeiro ventríloquo do mundo) atordoava a pequena (eu me dava conta disso perfeitamente) para desviar-lhe a atenção do quarto dos suplícios!... Cálculo estúpido!... Christine só pensava em nós!... Ela repetiu várias vezes, no tom mais meigo que pôde encontrar e com a mais ardente súplica: “Apague a janelinha!... Erik! apague a janelinha!...”
Porque ela pensava que aquela luz, de repente surgida na janelinha, e de que o monstro tinha falado de maneira tão ameaçadora, tinha a sua razão terrível de ser... Uma única coisa devia tranqüilizá-la momentaneamente: é que ela nos tinha visto a ambos, atrás da parede, no centro do magnífico abrasamento, de pé e bem dispostos!... Mas teria ficado mais sossegada, claro, se a luz fosse apagada...
O outro já tinha começado a sua demonstração de ventríloquo. Dizia:
— Olhe, estou levantando um pouco a minha máscara! Um pouco só... Está vendo os meus lábios? O que tenho de lábios? Eles não se movem!... Minha boca está fechada... minha espécie de boca... e no entanto você está ouvindo a minha voz!... Eu falo com a barriga... é muito natural... chamam a isso ser ventríloquo!... É bastante conhecido: ouça a minha voz... aonde você quer que ela vá? No seu ouvido esquerdo? no seu ouvido direito?... na mesa?... nos cofrinhos de ébano da lareira!... Ah! isso a espanta?... Minha voz está nos cofrinhos da lareira! Você a quer distante?... Você a quer próxima?... Retumbante?... Aguda?... Fanhosa?... Minha voz passeia por toda parte!... por toda parte!... Ouça, minha querida... no cofrinho da direita da lareira, e ouça o que ela está dizendo: É preciso girar o escorpião?... E agora ouça ainda o que ela diz no cofrinho da esquerda: É preciso girar o gafanhoto? E agora lá está ela na bolsinha de couro... O que é que ela diz? “Eu sou a bolsinha da vida e da morte!” E agora ela está na garganta de Carlotta, no fundo da garganta dourada, da garganta de cristal de Carlotta, minha palavra!... O que é que ela diz? Ela diz: “Sou eu, o senhor sapo! sou eu quem canta Escuto essa voz solitária... coaxo!... que canta coaxando!!...” E agora ela chegou a uma cadeira do camarote do fantasma... e ela diz: “A Sra. Carlotta esta noite está cantando de arrancar o lustre!...” E agora, ah! ah! ah!... aonde vai a voz de Erik?... Ouça, Christine, minha querida!... Ouça... Ela está atrás da porta do quarto dos suplícios!... Ouça-me!... Sou eu que estou no quarto dos suplícios!... E o que é que eu digo? Digo: “Ai daqueles que têm a felicidade de ter um nariz, um nariz próprio e de verdade, e que vêm passear no quarto dos suplícios!... Ah! ah! ah!”
Maldita voz do formidável ventríloquo! Ela estava por toda parte, por toda parte!... Passava pela janelinha invisível... através das paredes... corria ao redor de nós... entre nós... Erik estava ali!... Falava conosco!... Fizemos um gesto como que para nos atirar sobre ele... mas, já, mais rápido, mais inatingível do que a voz sonora do eco, a voz de Erik tinha saltado de volta para trás da parede!...
Logo não pudemos mais ouvir absolutamente nada, pois eis o que se passou:
A voz de Christine:
— Erik! Erik!... Você está me cansando com a sua voz... Fique quieto, Erik!... Você não acha que está fazendo muito calor aqui?...
— Oh! Sim! — respondeu a voz de Erik —, o calor está se tornando insuportável!...
E de novo a voz rouca de angústia de Christine:
— O que significa isto?!... A parede está toda quente!... A parede está queimando!...
— Vou lhe dizer, Christine, minha querida, é por causa da “floresta ao lado!...”
— E então... o que é que você quer dizer... a floresta?...
— Você não viu então que era uma floresta do Congo?
E a risada do monstro explodiu tão terrível que não distinguíamos mais os clamores suplicantes de Christine!... O visconde de Chagny gritava e batia nas paredes como um louco... Eu não conseguia mais segurá-lo... Mas só se ouvia a risada do monstro... e o monstro mesmo só devia ouvir seu próprio riso... Depois houve o ruído de uma rápida luta, de um corpo que cai no chão e que é arrastado... e o estalo de uma porta que se fecha com toda força... e depois, nada mais ao redor de nós a não ser o silêncio abrasado do meio-dia... no coração de uma floresta da África!...

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