Enquanto Christine permanecia fechada em seu quarto, Raoul fazia a si mesmo mil recriminações por sua brutalidade; mas, por outro lado, o ciúme retomava o seu galope nas suas veias em fogo. Para que a jovem tivesse demonstrado tamanha emoção ao saber que tinha sido surpreendida em seu segredo, era preciso que este fosse muito importante! Sem dúvida, Raoul, a despeito do que tinha ouvido, não duvidava da pureza de Christine. Sabia que ela tinha grande reputação de seriedade e ele não era tão noviço que não entendesse a necessidade em que se vê por vezes uma artista, acuada, de ouvir propostas amorosas. É verdade que ela respondera que lhe dera a sua alma, mas, com toda evidência, tratava-se, em tudo isso, de canto e de música. Com toda evidência? Então por que toda essa emoção de há pouco? Meu Deus, como Raoul estava infeliz! E, se ele tivesse pegado o homem, a voz de homem, ter-lhe-ia pedido explicações precisas.
Por que Christine fugiu? Por que não descia?
Estava pesarosíssimo e sentia enorme dor por ver escoarem-se longe da jovem sueca aquelas horas que esperara tão doces. Por que ela não vinha percorrer com ele a região em que tantas lembranças lhes eram comuns? E por que, como ela parecia nada mais ter para fazer em Perros e que de fato ela nada fazia ali, não retomava logo o caminho de Paris? Ele soubera que, pela manhã, tinha mandado rezar uma missa pelo descanso da alma do pai e que havia passado longas horas em oração na igrejinha e junto ao túmulo do menestrel.
Triste, desanimado, Raoul partiu em direção ao cemitério que rodeava a igreja. Empurrou o portão. Vagou solitário entre os túmulos, decifrando as inscrições, mas quando estava chegando atrás da abside, foi logo informado pela nota brilhante das flores que suspiravam sobre o granito sepulcral e transbordavam até por sobre a terra branca. Elas perfumavam todo aquele canto gelado do inverno bretão. Eram miraculosas rosas vermelhas que pareciam ter desabrochado pela manhã, na neve. Eram um pouco de vida entre os mortos, pois a morte, ali, estava por toda parte. Também ela transbordava da terra que tinha rejeitado o seu excesso de cadáveres. Esqueletos, crânios às centenas estavam amontoados contra a parede da igreja, presos apenas por uma ligeira tela de arame que deixava descoberto todo o macabro edifício. As caveiras, empilhadas, alinhadas como tijolos, consolidadas nos intervalos por ossos limpamente brancos, pareciam formar o primeiro alicerce sobre o qual se tinham construído as paredes da sacristia. A porta da sacristia abria-se no meio desse ossuário, tal como se vêem muitos ao longo das velhas igrejas bretas.
Raoul rezou por Daaé, depois, lamentavelmente impressionado por esses sorrisos eternos que têm as bocas das caveiras, saiu do cemitério, subiu o outeiro e sentou-se à beira da landa que domina o mar. O vento corria bravo pelas praias, latindo atrás da pobre e tímida claridade do dia. Esta cedeu, fugiu, e ficou apenas uma fímbria lívida no horizonte. Então, calou-se o vento. Era noite. Raoul estava envolto em sombras geladas, mas não sentia frio. O seu pensamento vagava pela landa deserta e desolada. Fora ali, naquele lugar, que estivera tantas vezes, ao cair da noite, com a pequena Christine, para ver dançar os “korrigans”, bem no momento em que a lua se levanta. No que lhe diz respeito, nunca os tinha visto, embora tivesse vista excelente. Christine, pelo contrário, que era um pouco míope, assegurava ter visto muitos deles. Essa idéia fê-lo sorrir e, a seguir, de repente, ele estremeceu. Uma forma, uma forma precisa, mas que tinha chegado ali sem que se soubesse como, sem que o menor ruído tivesse avisado, uma forma de pé ao seu lado, estava dizendo:
— Você acredita que os “korrigans” virão esta noite?
Era Christine. Ele quis falar. Ela lhe tapou a boca com a mão enluvada.
— Escute-me, Raoul, estou resolvida a lhe dizer algo de grave, muito grave!
A voz dela tremia. Ele esperou. Ela recomeçou a falar, oprimida.
— Você está lembrado, Raoul, da lenda do Anjo da música?
— Se me lembro! — disse ele. — Creio que foi aqui que o seu pai nos contou essa lenda pela primeira vez.
— Foi aqui também que ele me disse: “Quando eu estiver no céu, minha menina, vou enviá-lo a você”. Pois bem, Raoul, meu pai está no céu e eu recebi a visita do Anjo da música.
— Não duvido — replicou o rapaz com seriedade, pois achava que, num pensamento piedoso, a amiga misturava a lembrança do pai com o brilho do seu último triunfo.
Christine pareceu ligeiramente admirada com o sangue-frio com que o visconde de Chagny tomava conhecimento de que ela recebera a visita do Anjo da música.
— Como você entende isso, Raoul? — inquiriu ela, inclinando suas faces pálidas tão perto do rosto do rapaz que este pensou que Christine ia lhe dar um beijo, mas ela só queria ler, apesar das trevas, dentro dos seus olhos.
Por que Christine fugiu? Por que não descia?
Estava pesarosíssimo e sentia enorme dor por ver escoarem-se longe da jovem sueca aquelas horas que esperara tão doces. Por que ela não vinha percorrer com ele a região em que tantas lembranças lhes eram comuns? E por que, como ela parecia nada mais ter para fazer em Perros e que de fato ela nada fazia ali, não retomava logo o caminho de Paris? Ele soubera que, pela manhã, tinha mandado rezar uma missa pelo descanso da alma do pai e que havia passado longas horas em oração na igrejinha e junto ao túmulo do menestrel.
Triste, desanimado, Raoul partiu em direção ao cemitério que rodeava a igreja. Empurrou o portão. Vagou solitário entre os túmulos, decifrando as inscrições, mas quando estava chegando atrás da abside, foi logo informado pela nota brilhante das flores que suspiravam sobre o granito sepulcral e transbordavam até por sobre a terra branca. Elas perfumavam todo aquele canto gelado do inverno bretão. Eram miraculosas rosas vermelhas que pareciam ter desabrochado pela manhã, na neve. Eram um pouco de vida entre os mortos, pois a morte, ali, estava por toda parte. Também ela transbordava da terra que tinha rejeitado o seu excesso de cadáveres. Esqueletos, crânios às centenas estavam amontoados contra a parede da igreja, presos apenas por uma ligeira tela de arame que deixava descoberto todo o macabro edifício. As caveiras, empilhadas, alinhadas como tijolos, consolidadas nos intervalos por ossos limpamente brancos, pareciam formar o primeiro alicerce sobre o qual se tinham construído as paredes da sacristia. A porta da sacristia abria-se no meio desse ossuário, tal como se vêem muitos ao longo das velhas igrejas bretas.
Raoul rezou por Daaé, depois, lamentavelmente impressionado por esses sorrisos eternos que têm as bocas das caveiras, saiu do cemitério, subiu o outeiro e sentou-se à beira da landa que domina o mar. O vento corria bravo pelas praias, latindo atrás da pobre e tímida claridade do dia. Esta cedeu, fugiu, e ficou apenas uma fímbria lívida no horizonte. Então, calou-se o vento. Era noite. Raoul estava envolto em sombras geladas, mas não sentia frio. O seu pensamento vagava pela landa deserta e desolada. Fora ali, naquele lugar, que estivera tantas vezes, ao cair da noite, com a pequena Christine, para ver dançar os “korrigans”, bem no momento em que a lua se levanta. No que lhe diz respeito, nunca os tinha visto, embora tivesse vista excelente. Christine, pelo contrário, que era um pouco míope, assegurava ter visto muitos deles. Essa idéia fê-lo sorrir e, a seguir, de repente, ele estremeceu. Uma forma, uma forma precisa, mas que tinha chegado ali sem que se soubesse como, sem que o menor ruído tivesse avisado, uma forma de pé ao seu lado, estava dizendo:
— Você acredita que os “korrigans” virão esta noite?
Era Christine. Ele quis falar. Ela lhe tapou a boca com a mão enluvada.
— Escute-me, Raoul, estou resolvida a lhe dizer algo de grave, muito grave!
A voz dela tremia. Ele esperou. Ela recomeçou a falar, oprimida.
— Você está lembrado, Raoul, da lenda do Anjo da música?
— Se me lembro! — disse ele. — Creio que foi aqui que o seu pai nos contou essa lenda pela primeira vez.
— Foi aqui também que ele me disse: “Quando eu estiver no céu, minha menina, vou enviá-lo a você”. Pois bem, Raoul, meu pai está no céu e eu recebi a visita do Anjo da música.
— Não duvido — replicou o rapaz com seriedade, pois achava que, num pensamento piedoso, a amiga misturava a lembrança do pai com o brilho do seu último triunfo.
Christine pareceu ligeiramente admirada com o sangue-frio com que o visconde de Chagny tomava conhecimento de que ela recebera a visita do Anjo da música.
— Como você entende isso, Raoul? — inquiriu ela, inclinando suas faces pálidas tão perto do rosto do rapaz que este pensou que Christine ia lhe dar um beijo, mas ela só queria ler, apesar das trevas, dentro dos seus olhos.
0 comentários:
Postar um comentário