Um rei tinha-se sentado num barquinho, sobre uma dessas águas tranqüilas e profundas que se abrem como um olho brilhante no meio dos montes da Noruega...
E outra:
A pequena Lotte pensava em tudo e não pensava em nada. Passarinho de verão, ela planava nos raios de ouro do sol, levando sobre os cachos louros a sua coroa primaveril. Tinha a alma tão clara, tão azul quanto o seu olhar. Tratava a mãe com extremo carinho, era fiel à sua boneca, tinha muito cuidado com a roupa, com os sapatinhos vermelhos e com o seu violino, mas gostava, acima de tudo, de ouvir, para adormecer, o Anjo da música.
Enquanto o bom senhor dizia essas coisas, Raoul ficava olhando para os olhos azuis e para o cabelo dourado de Christine. E Christine pensava que a pequena Lotte era bem feliz de poder ouvir, para adormecer, o Anjo da música. Quase não havia história do velho Daaé em que não interviesse o Anjo da música, e as crianças lhe pediam explicações a respeito desse Anjo, infindavelmente. O Sr. Daaé era de opinião que todos os grandes músicos, todos os grandes artistas recebem pelo menos uma vez na vida a visita do Anjo da música. Esse Anjo se debruçou alguma vez sobre o berço deles, como aconteceu com a pequena Lotte, e é assim que existem pequenos prodígios que tocam violino aos 10 anos melhor do que homens de 50, o que, vocês hão de reconhecer, é absolutamente extraordinário. Às vezes, o Anjo vem muito mais tarde, porque as crianças não são bastante boazinhas e não querem aprender o método ou descuidam do estudo das escalas musicais. Às vezes, o Anjo não vem nunca, porque não se tem o coração puro nem a consciência tranqüila. Nunca se vê o Anjo, mas ele se faz ouvir pelas almas predestinadas. Isso muitas vezes acontece no momento em que menos esperam, quando estão tristes ou desanimadas. Então, o ouvido percebe, de repente, harmonias celestes, uma voz divina, e se lembrará disso pelo resto da vida. As pessoas visitadas pelo Anjo ficam como que inflamadas. Vibram com um frêmito desconhecido para o resto dos mortais. E têm esse privilégio de não mais poder tocar um instrumento ou abrir a boca para cantar sem produzir sons que dão vergonha por sua beleza a todos os outros sons humanos. Aqueles que não sabem que o Anjo visitou essas pessoas dizem que elas têm gênio.
A pequena Christine perguntava ao pai se ele tinha ouvido o Anjo. Mas ele balançava a cabeça com tristeza, depois o seu olhar brilhava e, olhando para a filha, dizia:
— Você, minha filha, vai ouvi-lo um dia! Quando eu estiver no céu, vou enviá-lo a você, eu prometo!
O Sr. Daaé começara a tossir nessa época.
O outono veio e separou Raoul e Christine.
Voltaram a se ver três anos mais tarde; já eram mocinhos. Isso aconteceu em Perros ainda e Raoul conservou do fato impressão tão grande que iria acompanhá-lo por toda a vida. O professor Valérius tinha morrido, mas a Sra. Valérius tinha ficado na França, cuidando de seus interesses, com o velho Daaé e a filha, que continuavam cantando e tocando violino, arrastando em seu sonho harmonioso a sua querida protetora, que parecia não mais viver senão de música. O jovem tinha vindo, por via das dúvidas, a Perros e, da mesma forma, penetrou na casa outrora habitada pela sua amiguinha. Viu primeiro o ancião Daaé, que se levantou de sua poltrona com lágrimas nos olhos e o beijou, dizendo-lhe que tinham guardado dele a mais fiel lembrança. De fato, quase não se passava dia sem que Christine falasse de Raoul. O ancião falava ainda quando a porta se abriu e, encantadora, apressada, a moça entrou, trazendo numa bandeja o chá fumegante. Reconheceu Raoul e livrou-se do seu fardo. Uma leve chama espalhou-se sobre o seu rosto encantador. Ela permanecia hesitante, calada. O Sr. Daaé olhou para os dois. Raoul se aproximou da jovem e deu-lhe um beijo que ela não evitou. Ela lhe fez algumas perguntas, desempenhou belamente o seu papel de anfitriã, retomou a bandeja e saiu do quarto. Depois foi refugiar-se no seu banco na solidão do jardim. Experimentava sentimentos que se agitavam pela primeira vez em seu coração adolescente. Raoul veio ter com ela e conversaram até a tarde, bastante embaraçados. Tinham mudado completamente, não reconheciam as suas personagens, que pareciam ter adquirido uma importância considerável. Estavam prudentes como diplomatas e se contavam coisas que nada tinham a ver com os seus sentimentos nascentes. Quando se deixaram, à beira da estrada, Raoul disse a Christine, pousando um beijo correto em sua mão trêmula: “Senhorita, eu não a esquecerei jamais!”. E foi-se embora, já arrependido de ter dito aquelas palavras ousadas, pois sabia bem que Christine Daaé não podia ser a mulher do visconde de Chagny.
Quanto a Christine, foi ter com o pai e lhe disse: “O senhor não acha que o Raoul não é mais tão gentil como antigamente? Eu não gosto mais dele!” E tentou não pensar mais nele. Tinha bastante dificuldade para conseguir isso e se lançou à sua arte que lhe tomou todos os instantes. Os seus progressos passaram a ser maravilhosos. As pessoas que a ouviam diziam que ela seria a primeira artista do mundo. Mas nessa época o seu pai faleceu e, com o golpe, ela pareceu perder, juntamente com ele, a voz, a alma e o gênio. Disso tudo ainda lhe restou um pouco, o estritamente suficiente para entrar no Conservatório. Ela não se distinguiu de nenhum modo, seguiu as aulas sem entusiasmo e ganhou um prêmio para agradar à Sra. Valérius, com a qual continuou vivendo. A primeira vez que Raoul reviu Christine na Ópera, ficara encantado com a beleza da moça e com a evocação das ternas imagens de outrora, mas até admirara com o lado negativo de sua arte. Ela parecia estar fora de tudo. Ele voltou a ouvi-la. Seguia-a nos bastidores. Ouviu-a por detrás de um suporte de cenário. Tentou chamar-lhe a atenção. Mais de uma vez, seguiu-a até a entrada de seu camarim, mas ela não o via. Parecia, aliás, não ver ninguém. Era a imagem da indiferença. Raoul sofreu com tudo isso, pois ela era bela; ele era tímido e não ousava confessar a si mesmo que a amava. E depois foi a paixão fulminante daquela noite de gala: os céus rasgados, uma voz de anjo a se fazer ouvir na Terra para o arrebatamento dos homens e a consumação do seu coração...
E depois aquela voz de homem atrás da porta: “E preciso me amar!”, e ninguém no camarim...
Por que ela tinha sorrido quando ele lhe disse, no momento em que reabria os olhos: “Eu sou aquele menino que foi recolher a sua echarpe no mar”? Por que ela não o havia reconhecido? E por que ela lhe havia escrito?
Oh! como é longa esta descida... longa... Ali está o cruzeiro dos três caminhos... Ali a landa deserta, a charneca gelada, a paisagem imóvel sob o céu branco. As vidraças tilintam, quebram-lhe nos ouvidos os seus vidros... Quanto barulho faz esta diligência que avança tão pouco! Ele reconhece as choupanas... os cercados, os barrancos, as árvores à beira do caminho... Ali está a última curva da estrada, depois vai-se vale abaixo e será o mar... a grande baía de Perros...
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